Um país quente, uma selecção morna, um apoio frio

A organização do Mundial quis dar muito apoio a Portugal, mas falhou. Dos 26 jogadores, 25 estiveram quase sozinhos. Esta é uma das dimensões do epílogo de um Mundial que deixa a selecção num limbo.

,Antonio Inoki
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Momento do jogo entre Portugal e Marrocos Reuters/PAUL CHILDS
Ronaldo no Mundial 2022
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Ronaldo no Mundial 2022 Reuters/KAI PFAFFENBACH

Portugal caiu nos quartos-de-final do Mundial 2022. Para um candidato ao título, este desfecho é caminhar instavelmente num limbo. Não haveria português que aceitasse uma queda nos “oitavos”, tal como poucos criticariam despudoradamente uma chegada às “meias”. Mas o que se faz com os “quartos”? São um limbo. É um mau desempenho? Mais ou menos. É bom? Mais ou menos.

Como sempre, trata-se de uma questão de expectativa. A portuguesa era a de a selecção ser campeã. A do mundo em geral – e isso sentiu-se em Doha – era a de assistir a Messi vs Ronaldo na final do Mundial 2022. Ninguém queria Argentina contra Portugal, todos queriam Messi contra Ronaldo.

“Cara, até eu, que sou brasileiro, ia gostar de um cenário desses. Sem poder ter Brasil campeão, eu pagava para ter Ronaldo a bater Messi numa final”, disparou há dias um jornalista brasileiro que conversava comigo na zona mista após o Portugal-Suíça.

Por que motivo esta final não vai acontecer? Da ligação com os adeptos à relação com a imprensa, passando pelo modelo de jogo, pelas figuras apagadas e pelos jovens em ascensão, há muito a dizer da vinda portuguesa ao Médio Oriente.

Vamos ao epílogo de 25 rapazes sozinhos no Qatar.

O apoio à selecção

Sabemos como a organização do Mundial fez questão de garantir apoio pujante à Argentina de Messi, ao Brasil de Neymar e a Portugal de Ronaldo.

No caso dos argentinos, o “quórum” de falantes de castelhano foi suficiente para arrastar os outros – os argentinos de “Buenos Árabes”. E criou-se ambiente.

No caso de Portugal, foi diferente. A selecção teve sempre cerca de mil ou dois mil adeptos portugueses, poucos e pouco organizados para “rebocarem” os nossos amigos da Índia, do Paquistão e de países árabes em geral.

E algo não está bem quando os adeptos da selecção interrompem o momento de respeito ao hino nacional para irem à loucura com Ronaldo quando este aparecia no ecrã do estádio. Daqui se percebe que grande parte dos adeptos, mais do que torcer por Portugal, torciam por Ronaldo, o único dos 26 jogadores que não esteve sozinho no Qatar.

Que me perdoem os portugueses que cá estiveram – e alguns até estiveram em todos os jogos –, mas não se trata, de todo, de que eles tenham sido incapazes ou pouco empenhados. Eram simplesmente poucos e a crueldade dos números é o que é. Já diz a sabedoria popular que mais vale poucos, mas bons. Portugal teve muitos, mas longe de serem bons.

E é de uma ironia extraordinária que a organização do Mundial tenha tentado que Portugal fosse das equipas mais apoiadas, surfando a “onda Ronaldo”, mas, no fim de contas, a selecção tenha tido um apoio bem modesto, limitado pela língua.

Cada selecção tinha um animador de bancadas ao seu serviço, e o português, Francisco Moreira, teve o trabalho mais difícil da já rica carreira de speaker. Chegou, por vezes, a tentar escapar às apertadas regras da FIFA e prestar-se a falar em inglês para os adeptos portugueses. Sim, em inglês. Era a única forma de o entenderem e serem espicaçados a fazerem um pouco de barulho.

Está tudo dito, certo?

O(s) caso(s) Ronaldo

Escrevi que Ronaldo foi o único dos 26 jogadores que não esteve sozinho. E, sejamos justos com Ronaldo, foi ele quem conquistou essa honra – com a imagem de estrela global que construiu com mérito em 20 anos de carreira, mas também pelo processo autodestrutivo que começou (mas não acabou) ainda antes da viagem para o Qatar.

Ronaldo fez questão de estar na berlinda e de colocar as câmaras viradas para si – literalmente, já que os fotógrafos viravam costas ao “onze” português que cantava o hino em campo para poderem focar o suplente Ronaldo.

Foi o capitão quem se prestou a chocar o mundo com o que disse a Piers Morgan horas antes do estágio da selecção nacional. Foi o capitão quem insistiu – em campo e fora dele – em que lhe dessem um golo que fora marcado por um colega de equipa. Foi o capitão quem se achou acima do treinador quando foi substituído, disparando impropérios que saberia que seriam focados e “cavalgados” por todo o mundo. E foi o capitão quem deu uma justificação falsa para o sucedido.

Foi o capitão quem, com a sua postura, dividiu o país entre três facções: a que acusa de ingratidão quem aponta o dedo a Cristiano, a que desdenha e destrói agressivamente o Ronaldo actual, e uma terceira, no meio destas duas, que aponta que o que Ronaldo conquistou e deu ao país não é apagado pela inevitável perda de faculdades, sobretudo por ter chegado ao Qatar em péssimo momento de forma no clube – e esta terceira era a visão genérica da maioria dos jornalistas portugueses em Doha.

O que se passou com Ronaldo foi bom ou mau para a equipa? É impossível medi-lo. Mas indiferente não foi de certeza. E nem a presença em Doha, mais perto da equipa do que a maioria dos portugueses, me permite responder a essa pergunta.

A relação com a imprensa

E se essa pergunta não pode ser respondida é, em parte, porque a proximidade dos jornalistas com a selecção não é a que já foi noutros tempos. Actualmente, a ordem é a de separar o trigo do joio, com a equipa isolada num grupo bem fechado – e não é um preceito apenas português, reconheçamos.

A relação da selecção nacional com a imprensa esteve longe de ser perfeita. Não foi turbulenta como noutros anos, e a ajuda foi permanente, mas também não foi o que a federação e a própria selecção queriam que fosse.

Vários jogadores e o seleccionador apontaram o dedo aos jornalistas quando pediram que fôssemos um só e que não dividíssemos a selecção com polémicas em torno de Ronaldo – apontavam ao excesso de perguntas sobre o capitão.

Fizeram-no como se não tivesse sido Ronaldo a provocar este cenário, de livre vontade, e como se a imprensa servisse para apoiar a selecção e trabalhar na tal premissa de “todos por um” – alguma até serve, mas isso não vem ao caso.

Na zona mista pós-Suíça, com Portugal nos píncaros do entusiasmo interno e externo, vários jogadores surgiram disponíveis para darem a cara e falarem ao país. Que longa foi essa zona mista. E que bom foi ouvi-los.

Na zona mista pós-Marrocos, momento em que o país queria saber o que lhes ia na alma, apenas Pepe e Bruno Fernandes surgiram – e o médio chegou a ser tocado discretamente pelo assessor de imprensa para que medisse bem o que estava a dizer. Não mediu e disparou fortemente contra a FIFA e a arbitragem.

O que diriam outros? Não sabemos. “Mais ninguém falará”, informou a FPF sobre o contacto com a imprensa escrita, que o da flash interview, obrigatório, já estava cumprido.

Os jornalistas foram dormir mais cedo do que contariam – e ao fim de 24 dias no Qatar esse prazer não é desdenhável, reconheço –, mas jornalisticamente ficou algo por fazer. E não foi por falta de vontade da imprensa.

Cinco a aparecerem

Desportivamente a selecção teve um Mundial curioso. Em Doha, assumamos, sentia-se a vontade de ver a equipa prosperar no futebol associativo que o talento existente já justificava.

Por outro lado, sabia-se que a equipa ainda não estava com esse futebol bem aprimorado, porque até um jogo combinativo precisa de ataque ao espaço, que faltou com Gana e Uruguai.

Foi isso que Gonçalo Ramos trouxe nos “oitavos”, após o castigo a Ronaldo e a uma fase de grupos passada com mérito, mas com um futebol ainda algo soluçante. Mas, nesse dia, Portugal passou a ser visto como candidato óbvio ao título.

Os jornalistas internacionais passaram a abordar-nos frequentemente para “bocas” sobre o que valia esta selecção – e também os jogadores.

Quanto custa o Gonçalo Ramos? É do Mendes? O Benfica quer vender? Todas estas questões foram colocadas por colegas de outros países, sedentos de informações sobre que craque é este que chutou Ronaldo para canto e que deu à selecção, naquele jogo, uma dimensão diferente no ataque – embora esteja por provar que Portugal jogue melhor sem Ronaldo.

Em Doha, Ramos chegou-se à frente. Tal como Diogo Dalot, que “sentou” Cancelo. E mesmo João Félix. Não que tivesse talento por provar, mas tinha uma posição por consolidar. E consolidou.

Depois, Bruno Fernandes apareceu com um rendimento altíssimo, mesmo sendo “pau para toda a obra”, em várias posições diferentes.

E Pepe. Que regalo foi ver Pepe, o melhor defesa da selecção no Mundial. Citando Fernando Santos, é um monstro. De quase 40 anos – algo que é ao mesmo tempo elogiável e preocupante para a selecção.

Cinco a desaparecerem

Também curiosa foi a forma como vimos aqueles que eram, possivelmente, os cinco jogadores mais proeminentes desta selecção em termos de notoriedade actual nas "big 5".

Ronaldo, Rúben Dias e João Cancelo apareceram bem abaixo do que sabem fazer. Até mesmo Bernardo apareceu um pouco menos fulgurante do que era esperado – em muitos momentos pelo quanto foi obrigado a pegar no jogo em zonas recuadas.

Depois, houve Leão. Numa conferência de imprensa, perguntei a Fernando Santos se um jogador tão individualista e vertical como Leão, que pede a bola encostado à linha, é difícil de encaixar num modelo de jogo associativo e de mobilidade permanente, tornando-se mais útil quando o jogo fica partido. Santos, surpreendentemente, respondeu sem pudor. E disse-me que sim.

Nessa medida, o melhor jogador da Liga italiana foi um corpo secundário. Não que tenha aparecido mal neste Mundial, pelo contrário, mas fez menos do que poderia ter feito – tal como Bernardo, não necessariamente por culpa própria, mas por culpa de um contexto.

E honra seja feita a Santos: em prol da sua liderança, num caso, e de uma ideia de jogo, noutro caso, não cedeu aos nomes. Só assim foi possível vermos Leão e Ronaldo no banco.

Santos ganhou pontos?

Antes do Portugal-Suíça, um jornalista russo abordou-me nas imediações do estádio Lusail e perguntou-me qual era o “onze” esperado.

Nesse momento, já havia ecos de que Ronaldo iria estar no banco. Disse-lhe o “onze” – com Ramos. E sem Ronaldo.

- No Ronaldo?
- No Ronaldo
.
- Really? Your coach has balls! [A sério? O vosso treinador tem coragem!] – é a tradução possível.

Serve este diálogo para ilustrar que senti, por cá, que Fernando Santos ganhou um capital considerável de respeito. Não apenas entre jornalistas nacionais, mas também estrangeiros – o já falado australiano que se sentou na zona portuguesa da tribuna elaborou raciocínio semelhante ao do russo.

Nessa medida, será assim tão descabido crer que Santos vai continuar? Mostrou coragem quando para este Mundial mudou o seu modelo de jogo de um momento para o outro, indo ao encontro do que os jogadores “pedem” – e também boa parte de comentadores e jornalistas, assumamos, que todos ficámos deliciados com aquele Portugal-Suíça. Mas também mostrou coragem quando sentou Ronaldo e não permitiu que o jogador e capitão não fosse mais do que isso: jogador e capitão.

Se tivesse de decidir dar ou não dar um novo contrato ao seleccionador, possivelmente a FPF teria aqui abertura para iniciar um novo ciclo, com um novo treinador. Tendo Santos contrato até 2024, após o Europeu, será assim tão descabido contar que continue?

E Ronaldo?

Cristiano Ronaldo tem 37 anos. O próprio já disse que quer ir ao Euro 2024 e, até pela saída pouco heróica que seria este Mundial 2022, não é utópico que siga o seu caminho na selecção.

recordes por bater, há Europeu e, assim permita o corpo, há Mundial daqui a quatro anos, por muito improvável que esse cenário possa parecer. O problema será que nível futebolístico é que o capitão ainda vai ser capaz de recuperar – seja na Arábia ou em qualquer outro local. Ao seu nível, Ronaldo terá sempre selecção, como a selecção terá sempre Ronaldo.

Cenário diferente vive Pepe. Aos 40 anos, já tem acumulado um rol de lesões considerável e, por muito bem que se trate – e há relatos de que é exemplar –, é difícil imaginá-lo em 2026. Para 2024, talvez não seja tão utópico, até porque o nível futebolístico demonstrado no Qatar não sugere qualquer perda de capacidade.

Mas Pepe e Ronaldo terão sempre um lugar na selecção, caso, num cenário futebolisticamente mais negativo para ambos nos próximos meses, queiram assumir um papel secundário de líderes, mesmo que fora do “onze” titular. Em teoria, um cenário desse tipo só dependeria deles próprios e da disponibilidade para cederem à natural perda de frescura e capacidade. E existe seleccionador que desdenhasse algum deles nesse papel?

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