O dia em que Portugal decidiu entregar-se à juventude

Gonçalo Ramos e João Félix destruíram a Suíça e colocaram Portugal nos “quartos” do Mundial. E agora, como chamar Ronaldo ao “onze”?

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Ramos e Félix em Lusail Reuters/PAUL CHILDS

Um dia, Fernando Santos, depois de destratado publicamente por Cristiano Ronaldo, decidiu tirá-lo da equipa. Nesse dia, chamou um jovem sem provas dadas na selecção nacional, para se juntar a um outro rapaz novo que já por lá tem andado.

O imberbe avançado – chamado Ramos – marcou três golos, deu outros dois a marcar (curiosamente, um à equipa errada) e, em estrita colaboração com o tal outro jovem – chamado Félix –, ajudou Portugal a chegar aos quartos-de-final do Mundial 2022.

Não, não estamos no domínio da imaginação cinematográfica de Tarantino. É real, foi nesta terça-feira, em Lusail, e não houve, como noutros jogos, direito a um plot twist hollywoodesco. Portugal sobreviveu mesmo sem Ronaldo – e, em alguns momentos, até pareceu mais vivo do que nunca.

O 6-1 aplicado à Suíça, no Qatar, garante que, em 2022, não haverá desilusão do nível de 2018 e 2020. Pelo menos os “quartos” estão garantidos.

E depois do que fez Gonçalo Ramos, que marcou o primeiro hat-trick do Mundial, resta uma pergunta. E agora, como chamar Ronaldo ao “onze”? Possivelmente, não chamar. E alguém traçaria este cenário hoje de manhã?

Mobilidade, sempre ela

Em Lusail, viu-se mais do mesmo em matéria de ambiente: Portugal com mais apoio, como tem tido sempre, mas com grande parte de “Ronaldos” do Médio-Oriente.

Foi até curioso – e sintomático – ver como os adeptos “portugueses” quando queriam começar a ola mexicana contavam “five, four, three, two, one, go!”.

Mas vamos à bola. Portugal entrou para este jogo com a já referida novidade de não ter Ronaldo, mas não foi só isso. Na dúvida entre Neves e Palhinha possivelmente Santos foi pelo meio-termo. William não é tão forte como Neves com bola, mas é melhor do que Palhinha. E não é tão forte como Palhinha sem bola, mas é melhor do que Neves.

Do lado oposto, a Suíça replicou o que fizeram Gana e Uruguai, com um sistema de três centrais que não tem sido habitual – a ausência de Widmer pode ter espoletado essa opção.

Depois, juntou-se a fome à vontade de comer. A fome era o facto de os suíços terem um sistema pouco trabalhado, sobretudo sem bola. A vontade de comer era o dinamismo e a mobilidade do ataque português, que teve Bernardo mais próximo do ponta-de-lança do que tem sido habitual. E essa mobilidade permanente – a tal que Santos considera dificultar a vida a Rafael Leão – expôs ainda mais a falta de referências de marcação e rotinas de sector dos defesas adversários.

E isso era ainda mais visível quando Portugal conseguia arrastar Akanji (central do lado direito) ao corredor, deixando Shär e Rodríguez em dois contra dois.

E foi assim que Portugal conseguiu ligar o jogo aos 18’, com Félix a encontrar Ramos em apoio frontal na área. Como se usa na gíria do basquetebol, o avançado “selou” o defensor nas suas costas, não o deixando ver a bola, e depois recebeu orientado com o pé direito e disparou um “míssil” com o esquerdo, num lance de parca probabilidade de sucesso. Teoricamente, não havia ângulo – achávamos nós.

Uma bola só para Félix

Depois de apanhar o telemóvel que rolou pela escadaria – cortesia do intenso jornalista australiano que já tem estado na zona portuguesa da tribuna de imprensa –, passei uns minutos a “monitorizar” Ramos.

E o jogador do Benfica esteve em movimento permanente. Mesmo quando não era correspondido, Ramos estava a fazer movimentos sucessivos de ataque ao espaço, algo que também retirava referências à Suíça – tinham Ramos a atacar o espaço, Bernardo entre linhas e Félix a pegar no jogo desde trás.

E esta foi uma novidade, já que Ronaldo pareceu estar a ser incapaz, nos outros jogos, de criar diagonais no espaço, mesmo quando havia condições para tal.

Portugal somou mais jogadas em futebol associativo, com movimentos entre linhas dos móveis atacantes portugueses.

Aos 37’, um canto deu golo de Pepe – Edimilson estava com o central, mas deixou-o fugir. Aqui, o jogo ficou muito mais fácil. Félix, que já estava a espalhar magia, assumiu ainda mais o protagonismo e mostrou que, no contexto certo e num bom modelo – e rodeado dos colegas indicados – pode ser de classe mundial.

É certo que a Suíça poderia ter marcado aos 38’, numa defesa incompleta de Diogo Costa, mas a posse de bola dos helvéticos era pouco relevante em matéria ofensiva – Shaqiri escondeu-se muito do jogo e a Suíça perdeu muitas bolas por incapacidade de ligar o jogo e dar opções aos centrais que tentavam sair – e os três têm essa capacidade.

Na segunda parte, os suíços tiveram de ir atrás do jogo. Desmancharam o trio de centrais e entregaram-se à sorte. O espaço que houve para jogar deu à equipa um perfil “suicida”. Primeiro, Dalot desequilibrou individualmente e cruzou para Ramos, que finalizou ao primeiro poste.

Depois, uma jogada tremenda de Félix, mais uma, ofereceu a Ramos a possibilidade de receber uma bola em zona frontal e servir Guerreiro, que finalizou.

A Suíça ainda reduziu por Akanji, mas pouco ou nada havia a fazer. O jogo estava feito – ou a caminho disso. Porque Ramos queria o primeiro hat-trick deste Mundial, quando se isolou e “picou” com categoria por cima de Sommer.

Até ao final, houve tempo para um golo anulado a Ronaldo e um golo de Leão, já nos "descontos", mas, sobretudo, para "festival" de Vitinha, que tomou conta da bola. E do jogo.

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