Lítio, um metal para recarregar o mundo
Há mais de cinco anos que os portugueses sabem que existe lítio debaixo da terra que pisam. Mas ainda não sabem se é uma bênção ou uma maldição. Enquanto o Governo fala na criação de uma nova indústria e a UE anuncia a abertura de fábricas de baterias, fervilha um conflito nas serras do Barroso, da Argemela e de Arga. Há famílias de costas voltadas e ameaças. As empresas desesperam com os atrasos, há acções em tribunal e receios sobre os impactes ambientais. O lítio pode ser o mais leve dos metais, mas o seu peso na transição energética está a virar o interior de pernas para o ar.
A pandemia não mete medo em demasia a Aida Fernandes. Até porque em Covas do Barroso, uma aldeia do concelho de Boticas com menos de 200 habitantes permanentes, o coronavírus não matou ninguém e até os idosos que foram infectados escaparam com sintomas leves: “A comida aqui é saudável, o ar é puro, a água é excelente. Talvez isso tenha um papel na resistência das pessoas à doença”, diz Aida, 42 anos, agricultora e criadora de vacas.
Tanto Aida como o companheiro, Nélson Gomes, mantiveram ao longo do último ano um estilo de vida com que muitas famílias urbanas puderam apenas sonhar; não estiveram em teletrabalho nem usaram o Zoom, fizeram passeios ao ar livre sem se cruzarem com outras pessoas e evitaram as filas nos supermercados ao plantarem e produzirem os alimentos que consumiram. Nélson só precisou de usar máscara para ir ao barbeiro em Boticas. Ficou logo com alergias. Só voltaria a colocá-la para participar numa manifestação contra a mina em Lisboa.
O que realmente aterroriza Aida também é invisível, mas não paira no ar, antes jaz debaixo dos seus pés, que caminham lentamente entres tubos azuis cravados na terra baldia para assinalar furos de pesquisa mineira. Era ela ainda menina, com 12 ou 13 anos, quando numas férias escolares, ao pastar as vacas do pai nos terrenos do Vale Cabrão, a comba vasta que se estende aos pés da povoação, avistou um geólogo: “Foi curioso porque nunca tinha encontrado ali ninguém a recolher amostras de pedras”, recorda. “E achei curioso também ele me ter perguntado o que eu queria ser quando fosse grande.”
Nem Aida nem o geólogo tiveram noção da relevância do encontro. Ela tornou-se adulta, juntou-se com Nélson e teve duas filhas. Ao contrário das suas amigas, rejeitou abandonar Covas para entrar na universidade. Quis permanecer ali, manter o contacto com a natureza e com os animais, ser em grande aquilo que não teve coragem para dizer ao cientista: uma mulher da terra, vaqueira, agricultora. “Cheguei a ter vergonha de dizer aos meus amigos que queria manter este estilo de vida porque na altura todos queriam ter outros empregos na cidade”, diz. “Hoje muitos mostram interesse e elogiam a minha decisão.”
Também o geólogo lhe deixou coisas por dizer. Estava a fazer as primeiras sondagens de lítio, o mais leve dos metais, presente na espodumena do subsolo do Alvão. Naquela época, os carros eléctricos ainda pertenciam ao espectro dos filmes de ficção científica: o lítio era então cantado por Kurt Cobain, dos Nirvana, por ser usado em fármacos no tratamento do distúrbio bipolar e, essencialmente, aplicado nas indústrias cerâmica e vidreira para baixar o ponto de fusão e assim reduzir o consumo energético.
Passaram-se 30 anos. E o lítio ficou grande; maior que Aida, maior que Covas. O material é hoje uma peça-chave no fabrico de baterias para os carros eléctricos e para o armazenamento de energia, essencial para a descarbonização dos transportes e para o combate às alterações climáticas. À aldeia remota chegaram mais cientistas e empresas mineiras: uma delas, a britânica Savannah Resources, avançou com um projecto de extracção de lítio a céu aberto. Mas desconhecem-se ainda as consequências ambientais da exploração a larga escala. O mundo encontrou em Covas algo de que precisa para a sua cura, mas tanto Aida como a maioria dos aldeões vêem na pretensa salvação do mundo a destruição do seu.
Após anos de impasse, Bruxelas apercebeu-se de que estava a ficar para trás na adopção de medidas favoráveis à transição energética, uma corrida liderada com grande vantagem pela China. A resposta foi uma chuva de dinheiro para fomentar o sector: “No ano passado, investimos cerca de 60 mil milhões de euros, que é três vezes mais do que a China, e acreditamos que nos próximos anos ultrapassaremos os EUA como segundo maior mercado mundial de baterias de lítio”, afirma ao PÚBLICO Sonya Gospodinova, porta-voz da comissão para o Mercado Interno, Defesa e Espaço. “Acreditamos que estamos na corrida e a acelerar.”
O “electroestado”
O Velho Continente tenta recuperar de um atraso de vários anos. Há mais de uma década que a China, completamente dependente a nível do abastecimento de petróleo e a braços com um gravíssimo problema de poluição atmosférica, começou a investir nas energias renováveis e na mobilidade eléctrica. O Estado distribuiu generosos incentivos para a compra de veículos eléctricos e as empresas investiram em minas de cobalto no Congo e de lítio no Chile e na Austrália, assegurando os minerais necessários para o fabrico de painéis solares e de baterias. Também surgiram várias refinarias, vocacionadas para a transformação da matéria-prima nos componentes realmente essenciais para as baterias — o carbonato e o hidróxido de lítio.
“Até 2015, o lítio era usado mais para a cerâmica e produtos lubrificantes. As baterias consumiam apenas 30% do lítio a nível global”, diz Martim Facada, um português que é o único corretor europeu de lítio, do Grupo SCB, em Londres. “Foi pela aposta do Governo chinês nas energias renováveis e nas baterias de lítio que hoje de 55 a 60% do lítio produzido já acaba em baterias.” Incapaz de se transformar num “petroestado”, a China optou de forma inteligente por se tornar num “electroestado”, criando uma cadeia de valor desde a mineração à construção de automóveis. Isto não significa que Pequim seja um exemplo na acção climática: mais de 1000GW da sua produção eléctrica é gerada em centrais a carvão. Isto representa metade da electricidade produzida a carvão em todo o mundo e, consequentemente, a maior emissora de dióxido de carbono para a atmosfera em todo o planeta.
A meio do percurso, apareceu a norte-americana Tesla. A empresa de Elon Musk transformou os subestimados carros eléctricos em produtos de charme e construiu no Nevada, EUA, a maior gigafactory (fábrica de baterias) do mundo, capaz de produzir 35GW de baterias de iões de lítio por hora. O investimento de Musk vai permitir-lhe reduzir o preço dos modelos da Tesla até 30%, colocando-os disponíveis ao orçamento da classe média Ocidental. A consultora Deloitte estima que em 2030 um terço dos automóveis seja eléctrico.