"Na negociação com a troika quisemos ser mais papistas do que o Papa"

Luís Braga da Cruz, presidente da Fundação de Serralves, acredita que o programa de ajustamento foi contaminado pela vontade de fazer “mudanças radicais”. E defende que a regionalização é a peça que falta para libertar a energia do país.

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Luís Braga da Cruz Adriano Miranda

Luís Braga da Cruz (Coimbra, Maio de 1942) raramente muda o tom de voz quando fala, mesmo quando a conversa o leva para temas aos quais dedicou grande parte da sua vida. Deixa no ar com frequência notas de ironia, até quando fala de assuntos solenes. De Serralves, segue a par e passo a política nacional e europeia, mas é quando fala do Norte que emprega mais determinação no seu discurso.

O Presidente da República deixou na sua mensagem do 10 de Junho quatro conselhos para o próximo governo, todos eles relacionados com as contas públicas, a competitividade e o equilíbrio da balança externa. O debate político está excessivamente concentrado na economia e alheio à situação social?
Eu creio que não. Há gente que se preocupa com tudo. Basta ler os artigos de opinião no Público. Há pessoas preocupadas com a educação, com a condição infantil. Mas há matérias que só se podem desenvolver de forma sustentada se o país gerar riqueza. Daí que eu compreenda a preocupação de algumas pessoas em centrar o discurso no crescimento e nas exportações. Mas também entendo que o crescimento harmonioso reclama que as pessoas possam ser felizes, que possam ter acesso à cultura, à saúde, à educação. Para isso é fundamental que haja geração de riqueza.

Passados seis ciclos de fundos comunitários, a maioria do território continua ainda a ser incluído nas regiões de convergência [com rendimentos médios per capita abaixo de 75% da média da União]. Foi um falhanço colectivo?
O que teria acontecido se não tivéssemos feito aquilo que fizemos? Se nós tivéssemos deixado correr o marfim estaríamos muito pior. Como costuma dizer o professor Valente de Oliveira, começou-se pelo mais óbvio, pelas infra-estruturas. Actuámos ao nível dos factores de competitividade – as acessibilidades, o saneamento básico para que houvesse qualidade de vida, a construção de escolas… Lembra-se que em 1985 a escolaridade obrigatória passou do quarto para o sexto ano? Por que não se passou para a escolaridade obrigatória até aos 18 anos nessa altura? Porque não havia condições. Tínhamos de passar por essas etapas intermédias. Quando a gente compara o processo de evolução de Portugal com o da maior parte dos países da Europa que sofreu com a guerra, esse processo lá foi muito mais lento. Houve mais tempo para assimilar esses processos de crescimento. E nós vimo-nos confrontados com a necessidade de fazer as coisas mais depressa e por vezes com menos capacidade de assimilação.

Cinco anos depois do início do ajustamento, o Presidente da República considera que o pior já passou. Concorda ou ainda é cedo para respirarmos de alívio?
Depende dos critérios de medição. Podemos olhar para os indicadores positivos: de facto nós começámos a crescer, de uma forma ainda incipiente, mas começámos a crescer. Há um indicador que acho muito curioso que é a evolução das exportações em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), que já vai nos 40%. Há cinco anos estávamos nos 30% e já estivemos perto dos 20. Isto é um progresso. Houve muitas empresas que desapareceram com a crise, mas entretanto outras criaram-se de novo e estas já estão em ambiente muito mais competitivo. Já estão mais viradas para a exportação. Se continuarmos nesta via podemos ter ainda uma fortíssima margem de crescimento.

Ficou surpreendido com o dinamismo das empresas portuguesas?
Fiquei agradavelmente surpreendido. Mas, por que é que isso acontece? Porque essas empresas têm quadros qualificados, que saíram das nossas universidades e em especial das universidades do Porto, do Minho, de Aveiro. São quadros que começam a alterar a forma de pensar.

Ou seja, este sucesso está associado ao investimento na qualificação dos últimos 20 anos?
Absolutamente. Não tenho a menor dúvida. 

Por que é que destaca as universidades do Norte nesse processo?
Por causa de uma atitude: a de valorizar a ligação às empresas, o empreendedorismo. Muitas dessas universidades estimulam a formação em áreas necessárias para constituir empresas, como elaborar planos de negócio, fazer estudos de mercado, ensinar rudimentos de contabilidade a todos os alunos. Essa atitude é muito mais forte aqui no Norte do que no resto do país.

Recuando ao momento em que se assinou o memorando com a troika, acreditava que o ajustamento seria difícil como foi ou o que se passou foi para lá das suas expectativas?
Sou muito adepto do gradualismo, das transformações graduais.  

Como é que se podia fazer um ajustamento gradualista?
Se há mais pobreza, se há mais desemprego, isso não é evidentemente um resultado positivo. Pode ter sido assumido. A grande objecção que eu faço à forma como o programa foi negociado com a troika é que a certa altura quisemos ser mais papistas do que o Papa. Aproveitou-se a troika para fazer mudanças radicais e num ambiente desses as pessoas ficam mais tolerantes ou mais acomodatícias, acabam por ir sofrendo aos poucos e aguentam. Podia-se ter reclamado mais tempo, períodos mais longos? Outro lado muito negativo foi o facto de a dívida ter subido muito. E agora, como é que se paga?

Que importância concede à criação de uma maioria estável, que tem sido uma das principais preocupações do Presidente da República?
Em democracia é mais fácil governar com maiorias absolutas, que resultam da conciliação de interesses. Mas muitas vezes os interesses são inconciliáveis. E temos tido a experiência em Portugal de governos sem maioria absoluta que não foram completamente negativos. Quando há uma maioria absoluta, a oposição é sempre mais abrasiva de que com uma maioria relativa. António Guterres não teve maioria absoluta e as coisas seguiam… 

A sua geração era melhor preparada que a actual para governar?
Não sei.

Há quem considere que o pessoal político das últimas gerações estuda pouco os problemas e conhece mal o país.
Isso já não é um problema de preparação, é um problema de maturidade. Os políticos de 1986 não eram políticos que nasceram e cresceram na política. Eram pessoas motivadas por qualquer razão, mais altruísta ou menos altruísta, mas tinham um percurso profissional, académico ou empresarial. Diz-me muita gente que a Comissão de Coordenação da Região do Norte [que presidiu entre 1986 e 1995 e entre 1996 e 2001] foi uma boa escola política. De facto as pessoas tinham de ter alguma tecnicidade para lidar com problemas de natureza política. Se a certa altura estavam formatados a reflectir, a preparar uma solução, a testá-la e a desenvolver participação de pessoas em torno de uma solução, o que é isso senão política?  

A prioridade do Programa 2020 [que gere o próximo ciclo de fundos estruturais] concentra-se na competitividade das empresas e, de alguma forma, subalterniza a aposta nas infra-estruturas públicas. Está de acordo com esta hierarquia de prioridades?
A Europa, quando entra num período de programação, estabelece a sua estratégia que, neste caso, aponta para um crescimento mais inteligente, sustentável e inclusivo…

… portanto, estas prioridades não são uma originalidade deste Governo?
É uma orientação europeia, mas o facto de o Governo dizer que a economia tem de se orientar para os bens transaccionáveis ou para o aumento da exportação, isso são objectivos nacionais. Sob o ponto de vista de planeamento macro estou completamente de acordo que estas escolhas. São bem-feitas. E depois foram introduzidas coisas novas, nomeadamente a integração de pessoas com risco de pobreza… aquele programa da Inovação Social está muito bem desenhado. A passagem destes objectivos a quatro programas temáticos foi uma opção política que não me parece mal. Do ponto de vista de quadro de trabalho estamos bem. Agora, estamos muito habituados a cinco quadros de programação de betão e de betume, e de repente passou a não ser assim.

E isso pode gerar problemas no diálogo com os actores locais?
Pode, porque eles não sabem orientar a sua actuação para cair no agrado do eleitor a partir de investimentos de natureza imaterial. Não há dúvida que afectar, não sei se são 40% dos recursos, na competitividade é positivo, porque vai fazer com que as empresas dêem corda aos sapatos e passem a ter uma preocupação com a exportação ou com a capacitação dos seus recursos. Agora como é que se faz a transição, como se estabelece o diálogo e se transforma tudo isto em política pública, aí é que haverá naturalmente muito a dizer.

O Norte, passados todos estes anos, continua a ser uma região pobre em relação ao conjunto nacional. Para a sua geração isso deve ser um pouco frustrante…
É frustrante e até gera alguma má consciência. O que deveríamos nós ter feito que não fizemos? Eu tenho uma teoria: em tempos trabalhei alguns números e posso afirmar que o Norte foi muito penalizado por sofrer uma distribuição assimétrica dos recursos nacionais durante muitos anos. Entretanto com a centralização que se foi manifestando, o poder de decisão, o poder de afirmação do Norte também se foi perdendo. 

O passado ainda pesa muito no presente da região?
Pesa, pesa… É evidente que há coisas que foram bem aproveitadas, no turismo, em algumas indústrias tradicionais. Um projecto motor para o Norte, para o vale do Ave, por exemplo, um projecto locomotiva, como se fez em França – levar a aeronáutica para Toulouse ou as telecomunicações, para Rennes – teria sido importante.

Faltou alguma discriminação positiva para acelerar a superação dos problemas estruturais do Norte?
Sem dúvida. Podemos entrar aqui na especulação sobre o que poderia ter acontecido. Mas há que notar que a Madeira em 1985 estava muito atrás do Norte em termos de PIB per capita e a Galiza estava igual a nós. E de facto a Galiza descolou…

A regionalização faz sentido neste tempo político em que o país tem pela frente o enorme desafio do défice e da dívida?
Quando me desafiam para falar é das poucas coisas em que não hesito em aceitar, embora não seja um interlocutor… sou um bocado vencido nessa discussão…

O senhor e toda uma geração de quadros do Norte…
Sim. Ficámos um pouco desiludidos. A retirada da regionalização do programa político do PSD, julgo que em 1997, foi uma das decisões mais dramáticas para o Norte.

Porquê para o Norte e não para o país?
Porque o Norte é quem ganharia mais com a regionalização. Ponto final. Provavelmente por isso, por algum receio, é que o imperativo constitucional não foi cumprido.

Por que é que o Norte ganharia mais do que o Alentejo?
Porque tem muito mais gente, muito mais base industrial… O Alentejo é muito simpático, é uma região da qual a gente gosta muito, mas de facto os seus recursos, dos cavalos de Alter aos mármores do Alto Alentejo, não têm o potencial dos do Norte. Aqui havia uma tradição industrial fortíssima. Houve uma concepção de estrutura de apoio à actividade produtiva que se tivesse tido a sorte de ter uma maior autonomia regional, naturalmente que essas actividades teriam muito mais expressão em termos de economia.  

Houve uma opção consciente para evitar que o Norte se tornasse um pólo mais poderoso no conjunto nacional?
Isso é como dizia o Padre Américo: ‘Não há rapazes maus’. As pessoas nunca fazem isso por maldade, fazem por medo. Por não terem informação sobre o que aconteceu em França ou em Espanha. Eu recordo bem o presidente do Senado espanhol a dizer que um dos principais factores do crescimento económico da Espanha foram as autonomias, foi a capacidade de libertar energia em cada região e estabelecer um quadro competitivo.

Concorda com a proposta de António Costa de eleger os presidentes das Áreas Metropolitanas por voto directo e a eleição dos presidentes das CCDR por uma assembleia de autarcas?
Quando as coisas entram por aí é porque não se quer encarar o problema de frente. Pôr as CCDR, que são órgãos desconcentrados da administração central, reféns dos votos dos autarcas é uma solução espúria, ambígua. Se há uma função de planeamento, tem de ser enobrecida. Colocar essa função na vontade dos autarcas, pode ter alguns efeitos integradores, mas não me parece que seja positiva. Quer-se formular uma solução que não tem paralelo. Em França, na Espanha ou na Alemanha, que têm fórmulas descentralizadoras muito mais eficientes, nunca ninguém foi por aí. Não há responsabilidade sem legitimidade política. É assim em qualquer parte do mundo. Porque é que havemos de ser originais e de ter medo das soluções democráticas?

E concorda com as eleições directas do presidente das áreas metropolitanas?
Pode fazer a pergunta para as áreas metropolitanas ou para as Comunidades Intermunicipais (CIM). Há claramente problemas que são nacionais, há problemas de natureza local, e vamos aceitar que a escala municipal é uma excelente escala para resolver problemas de nível local…Mas também há problemas intermédios, que estão claramente mal resolvidos. Há problemas que na Itália, na França ou na Polónia que se resolvem com regiões, com eleitos regionais. Como é que em Portugal se deve abordar esses problemas intermédios? Através de cinco regiões, ou de oito como o engenheiro Guterres preferiu? Ou é com CIM ou com distritos - nós demos cabo dos distritos e agora criámos as CIM em muito maior número? Se chegarmos à conclusão que determinados problemas de resolvem à escala de uma associação intermunicipal, então é preciso dar legitimidade política a essa associação para que os resolva

Portanto, se as Áreas Metropolitanas forem eleitas, as CIM também o devem ser?
Com certeza. Agora se me perguntassem o que preferia, por onde se devia começar, eu diria que se devia começar com aquilo que é padrão em todo o mundo, que é criar áreas uma dimensão regional que daria quatro ou cinco em Portugal. 

O Porto tem assistido a alguma renovação económica. Este dinamismo surpreendeu-o?
O Porto vale pela sua maneira de ser. Eu revejo-me muito nesta forma de o Porto se afirmar através das suas instituições…

Refere-se a Serralves, à Casa da Música…
… ao Futebol Clube do Porto…

Mas depende também das companhias de aviação low-cost.
O crescimento do turismo no Norte de Portugal deve-se essencialmente à existência de um aeroporto com capacidade para se desenvolver – foi uma boa decisão criar um aeroporto que então se dizia que era muito grande, mas foi ele que pode facultar ligações directas para muitos destinos.

Está contente com o mandato de Rui Moreira?
Como presidente da Fundação de Serralves eu tenho a dizer que ele visitou mais vezes Serralves em 100 dias do que o seu antecessor em 12 anos.

E isso tem algum significado político?
Tem significado político. No Porto hoje há uma política de cultura e isso é importante porque quem chega ao Porto via low-cost pagou pouco pela viagem, mas depois está disposto a fazer despesa com a cultura. Nos últimos cinco anos, o número de visitantes estrangeiros em Serralves duplicou. Eram 40 mil há seis anos, hoje são 108 mil. E o turista estrangeiro paga a tarifa na íntegra.

A cultura é um activo económico…
Veja os inquéritos feitos pela Guimarães Capital da Cultura. Qual era a principal motivação para um visitante estrangeiros visitar a cidade? Não era o castelo nem o Paço dos Duques; a primeira motivação era ver as manifestações da cultura contemporânea portuguesa. Isso é surpreendente.

Que impacto está a ter em Serralves o corte de 30% da dotação do Estado?
Quem não tem cão, caça com gato. Se o Estado nos corta 30% isso tem naturalmente reflexo no nosso orçamento de exploração. Nós, em 2008, antes dos cortes, chegámos a ter um orçamento de 10.2 milhões de euros para os quais o Estado contribuía com 48% e hoje temos um orçamento de 7.7 milhões. E se me perguntar se tivemos menos visitantes, digo não: tivemos mais.

Mas em termos de exposições e de actividade cultural.
Temos feito mais ou menos o mesmo número de exposições, se contabilizarmos as exposições que fazemos fora de Serralves e do Porto. Acontece que a este corte do orçamento tivemos de ter uma gestão mais cuidadosa, usando mais a nossa colecção, que já é significativa. Chegámos a trazer o Francis Bacon, o Andy Warhol, que eram exposições muito mais caras. Mas deixe que diga que que continuamos a fazer as coisas com qualidade e é muito gratificante notar que das duas grandes exposições que fizemos no final do ano passado, produzidas por Serralves, uma está agora no Guggenheim, em Nova Iorque, e a outra, a da arquitectura participativa, em Montreal.

Houve uma altura em que foi muito crítico em relação a estes cortes. Mas agora o seu discurso parece agora mais resignado…
Está-me a dizer que ‘quem não berra, não mama’ (risos)? Os primeiros cortes que foram feitos a Serralves e às instituições culturais em Portugal tinham uma discriminação positiva: as instituições que tivessem financiamentos do Estado inferiores a 50% do seu orçamento, que era o nosso caso, eram isentas de cortes. E depois lá houve alguém que se lembrou de limpar essa regra para nos atingir a nós, que éramos a única instituição em Portugal nessas circunstâncias. E de facto um corte de 1.2 milhões de euros pode-se dizer que penalizou o nosso trabalho. É evidente que todas as instituições tiveram cortes, e eu lembro-me até do Museu do Douro, que ficou com algumas dezenas de milhares de euros. Nós ficávamos portanto numa situação de alguma constrição, ao ver algumas instituições com apoio público muito menor e que tinham sido tratadas com muita severidade. É evidente que já não gostámos tanto que instituições como Centro Cultural de Belém que em vez de ter cortes de 30% teve de 20, com uma explicação descosida.

Serralves em Festa voltou a bater recorde de público este ano. Parece que Serralves tem uma obsessão em bater recordes. Não há um limite para o crescimento?
Há, naturalmente. Nunca fui muito sensível à questão do crescimento. Fico satisfeito quando há muita procura. Mas isso também depende de coisas como o tempo; se chover há menos gente. Para nós o Serralves em Festa é muito importante por uma razão muito simples: Serralves, que deverá atingir este ano cerca de meio milhão de visitantes, ainda pode ter um bocadinho de crescimento. Ver o museu cheio às quatro da manhã do Serralves em Festa é uma forma de atrair novos públicos.

Continua a ser um independente ou tem alguma ligação ao PS?
Continuo a ser independente.

E se tiver um convite para desempenhar um cargo no Governo, o que diz?
Eu tenho um neto que no outro dia me chamou ‘idoso’. Tenho bem a noção das minhas capacidades e das minhas limitações. Fui ministro, foi uma experiência muito interessante num momento concreto, mas quando faço uma opção na vida tenho tendência a ser-lhe fiel. Sou independente, fiz uma opção, sou mais sensível às políticas sociais do PS, mas não gosto de me meter na refrega.

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