Inspectores do fisco reclamam independência face aos governos

Nuno Barroso, representante dos inspectores tributários, denuncia a falta de transparência interna na administração fiscal e lamenta que a instituição tenha sido arrastada nos últimos anos para “querelas partidárias”.

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Haver tutela política sobre todos os documentos da AT cria sensação de condicionamento, diz Nuno Barroso Rui Gaudêncio

Da lista VIP ao caso das 20 mil transferências para contas offshores que não foram alvo de controlo no fisco, os funcionários da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) estão “cansados” de ver a credibilidade deste importante pilar do Estado posto em causa. Nuno Barroso, presidente da Associação Sindical dos Profissionais de Inspecção Tributária e Aduaneira (APIT), di-lo defendendo para o fisco mais autonomia em relação ao Ministério das Finanças. Não seria um grito do Ipiranga, apenas um passo para tornar a AT menos dependente de orientações políticas. É cedo para concluir se a falta de informação sobre offshores condicionou os inspectores, defende Nuno Barroso, mas não duvida que muitos fluxos teriam de ser fiscalizados. O responsável falou ao PÚBLICO antes da Procuradoria-Geral da República ter lançado críticas implícitas à equipa da AT que apoia o Ministério Público na Operação Marquês.

A confiança na administração tributária fica abalada perante os cidadãos e os seus próprios funcionários com o caso das transferências de quase 10.000 milhões de euros que não foram alvo de processamento interno?
Qualquer situação que ponha em causa o nosso trabalho porá sempre em causa a imagem de credibilidade da AT. O que mais nos incomoda, tal como no caso da lista VIP, é não haver uma única palavra dos responsáveis da AT em defesa dos funcionários. [Bastava] um email explicando que estão a proceder às averiguações necessárias. Falta transparência interna.

Os funcionários não foram informados pela direcção-geral sobre o que está a ser feito interna e externamente em relação a este caso?
Não recebemos qualquer comunicação. Tudo o que temos vindo a acompanhar é através da comunicação social e das audições parlamentares. Independentemente de se vir a apurar que foi um erro ou que foi intencional, era importante afirmar que o serviço público da AT continuará a ser feito com qualidade.

Estranha o silêncio?
Estranho. Esta não é uma ressalva que se coloca apenas à actual directora-geral [Helena Borges], mas que ocorre desde que estou nesta casa, há 22 anos.

É legítimo um inspector perguntar-se se pode desenvolver com confiança o seu trabalho, sabendo que um conjunto de informação não foi correctamente processado no sistema central?
Nos últimos anos, a AT tem sido arrastada para querelas político-partidárias. Estamos cansados de ser completamente enlameados nos últimos anos. Nenhum inspector está receoso de que o seu trabalho está a ser condicionado por má informação ou informação deficiente. Sem a existência das conclusões da IGF e do IST, é ainda muito cedo para perceber se a informação condicionou os inspectores. É preciso que as conclusões sejam tornadas públicas.

Sabemos que estes fluxos não resultam tradicionalmente num grande volume de receita. Mas importa fazer o seu tratamento e controlo para detecção de eventuais casos conexos de crime económico e financeiro.
Quando estamos a falar de operações comerciais, temos de fazer o controlo da materialidade dessas operações e seguir o fluxo das mercadorias – e poderemos estar perante casos de planeamento fiscal agressivo, de falso financiamento com a intenção de reduzir os custos das empresas que estão sediadas e pagam os impostos em Portugal. Dos montantes omitidos, não sabemos se deles vai resultar algum imposto em falta. É muito cedo para o saber. Mesmo quando há os acordos de troca de informações [com paraísos fiscais], a qualidade da informação nem sempre é a que se pretende e é necessário insistir [para a obter]. Se há um contribuinte com um património muito reduzido ou sem património, e que aparece a transferir valores absurdos, isso é um alerta. Podemos chegar ao fim e tudo estar perfeitamente explicado, mas essa situação teria de ser fiscalizada. Em vários milhares de operações omitidas, obviamente muitas delas teriam de ser alvo de fiscalização. Não tenho dúvidas.

Uma das críticas públicas feitas à AT é o facto de não divulgar estatísticas ou, por exemplo, informações vinculativas. Concorda?
A administração pública tem de investir na transparência, encontrar uma base de dados onde todas essas situações pudessem ser sindicadas pelo mais comum cidadão. A AT precisa de um gabinete de comunicação próprio, não pode estar dependente da Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais. Não pode ter medo [de prestar informação]. Precisa de um estatuto de independência e autonomia – neste momento não tem.

Falta-lhe independência perante o Ministério das Finanças?
Independência e autonomia. A AT será sempre tutelada politicamente pelo ministério, mas se caminhar no sentido de ter mais independência seria preferível. E, aí, a abertura de um gabinete de comunicação próprio [para os media] e de um gabinete de comunicação ao contribuinte seria muito útil. Não é preciso fazer um grande inquérito para perceber que a maior parte dos portugueses tem demasiadas dúvidas sobre legislação fiscal.

Em que questões específicas há alguma intrusão do poder político?
Não é necessariamente uma intrusão no sentido de condicionar definitivamente aquilo que a AT faz. Por exemplo, o Plano Nacional de Actividades da Inspecção Tributária e Aduaneira deveria ser um instrumento criado, discutido e implementado pela AT, e neste momento depende muito das orientações políticas. O facto de a tutela política existir em relação a todos os programas e documentos cria sempre a sensação de que algum condicionamento poderá acontecer.

A não publicação das estatísticas dos offshores é um exemplo?
A partir do momento em que há um despacho que obriga à publicação…. [Deve ser dado] conhecimento à tutela política, mas os dados devem ser publicados.

Como é possível que durante quase dois anos a área dos sistemas de informação, central para a actividade das restantes áreas do fisco, tenha estado sem um subdirector-geral?
[Pausa] Eu não tenho uma explicação... Neste momento, só os responsáveis da AT e os responsáveis políticos podem responder à pergunta.

A questão foi suscitada internamente?
Não é o facto de não termos um subdirector para esta área que ela parou de desenvolver o seu trabalho com qualidade. Estranha-se realmente – e essa sensação não pode ser retirada – o porquê de, durante dois anos, não ter havido uma nomeação. As razões que estarão por detrás dessas decisões, apenas os responsáveis da AT e do poder político [podem esclarecer].

Num paper sobre as instituições públicas, a investigadora Ana Maria Evans identificava que o pequeno contribuinte “é tratado como um número”, indefeso em caso de erro perante os procedimentos automatizados. É um retrato de quem olha do lado de fora. Como funcionário, revê-se na descrição?
A AT é uma máquina muito complexa e hierarquizada. Haverá agora 1,5 milhões de euros de aposta informática. Temos de humanizar a AT, uma questão que não tem sido tratada por nenhum Governo na última década. Quando se fala de os contribuintes serem olhados como números, a sensação dos próprios funcionários é que, dentro da casa, eles próprios são olhados como números.

O facto de a AT estar orientada por objectivos de cobrança prejudica essa humanização e a atenção dada a outro tipo de atribuições do fisco, nomeadamente o combate à evasão que não passe só pela arrecadação de receita?
É uma questão que deveria ser óbvia para todos nós, mas também é culpa de um sistema de avaliação da administração pública que, na adaptação à AT, encara a maior parte das funções como uma fábrica de salsichas. Quando tratamos dos impostos, as decisões são sempre diferentes. Sempre. Encarar o trabalho da AT como estando a produzir salsichas irá sempre criar maus resultados.

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