Sigilo impede Governo de revelar bancos com mais transferências para offshores

Dinheiro transferido para o Panamá estava quase todo oculto, revelou Rocha Andrade. Mudança de sistema informático em 2016 permitiu descobrir falhas de anos anteriores.

Foto
Os deputados fizeram uma maratona para ouvir Paulo Núncio e Rocha Andrade no Parlamento Nuno Ferreira Santos

Já tinha passado uma hora e meia de audição parlamentar quando o actual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais foi confrontado com uma pergunta do deputado Eurico Brilhante Dias (PS) à qual disse não poder responder.

Pouco antes, o país tinha ficado a saber em directo que os 10.000 milhões de euros transferidos para offshores de 2011 a 2014 que passaram ao lado do controlo inspectivo do fisco corresponderam a 14.484 transferências individuais que constavam de 20 declarações enviadas pelos bancos mas que, dentro do fisco, não foram processados informaticamente para o sistema central da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

E foi quando Brilhante Dias quis saber se há uma concentração dessas 14 mil transferências em instituições financeiras específicas que o governante se refugiou no “sigilo bancário” e no sigilo fiscal para não responder à questão. Isto porque, tendo pedido uma opinião jurídica ao Banco de Portugal (BdP) antes de ir ao Parlamento, o supervisor o aconselhou a não revelar “publicamente informação que permitisse a identificação das entidades bancárias na origem” das transferências.

Estava lançada a dúvida – e muitas outras foram surgindo ao longo do dia em que o actual e o anterior secretários de Estado dos Assuntos, Rocha Andrade e Paulo Núncio, foram ouvidos sobre o caso das transferências omissas no fisco. Uma delas foi lançada por Miguel Tiago, do PCP, e por Mariana Mortágua do BE, que lembraram o colapso do BES e que "não houve nenhum escândalo, do BPN ao BES, que não tivesse passado por offshores".

E também foram lançadas algumas pistas sobre o destino das transferências ocultas – algo que se retira da comparação entre os dados das transferências divulgados em Abril de 2016 (7162 milhões de euros de 2011 a 2014) e os valores agora conhecidos para o mesmo período (16.900 milhões).

Quando o deputado do PCP Miguel Tiago perguntou sobre o destino das transferências, Rocha Andrade referiu que a maior parte dos valores desconhecidos é de transferências para o Panamá. Por exemplo, de todas as transferências hoje conhecidas em relação ao Panamá no ano de 2014, 97,7% "está no oculto". “Coisa semelhante [aconteceu] com as Antilhas holandesas dos anos de 2012 e 2013”, exemplifica Rocha Andrade. Mas há já hoje uma explicação? “Não lhe consigo dizer se isto é estatisticamente significativo ou não”, reconheceu.

Se antes de se descobrirem os dados omissos se pensava que, naqueles quatro anos, tinha havido 32.113 operações para offshores (transferências individuais) e esse valor corresponderia a cerca de 7100 milhões de euros, as 14 mil transferências omissas correspondem a 9800 milhões de euros. O que levou a novas interrogações. “As transferências ocultas tinham em média um valor maior do que as que ficaram registadas”, precisou aos deputados Fernando Rocha Andrade.

Miguel Tiago, do PCP, também perguntou a Rocha Andrade se as transferências estavam concentradas em alguns grupos económicos (na origem e no destino das transferências), mas também em relação a esta questão Rocha Andrade disse não ter informação para dar neste momento, mas garantindo que esse controlo inspectivo será feito. 

Como foram descobertos os 10 mil milhões?

Uma das questões centrais que Rocha Andrade já tinha explicado aos deputados poucas horas antes de ser ouvido na comissão de orçamento e finanças – porque nesta quarta-feira ainda houve um debate de actualidade no plenário sobre offshores antes da audição – foi a de se explicar como se chegou à descoberta dos 10.000 milhões de euros omissos.

O secretário de Estado conta que o Governo recebeu as estatísticas das transferências de 2015 no final do Verão de 2016. É aí que o seu gabinete nota uma grande diferença entre os valores então conhecidos relativamente a 2014 (373,5 milhões de euros) e os dados de 2015 (8885 milhões de euros). “Perante tamanha divergência, naturalmente o Governo questionou a AT”, disse. Ora, foi a partir daqui que o processo começou. A Autoridade Tributária percebeu que os dados de 2014 “não estavam correctos”.

E percebeu-o porque em Julho de 2016 entrou em funcionamento um novo sistema informático de processamento dos ficheiros recebidos dos bancos com a informação das transferências – que se aplicou já às estatísticas de 2015 – e quando o mesmo software, depois da questão suscitada pelo secretário de Estado, foi correr nos ficheiros dos anos anteriores encontraram-se divergências não apenas nos valores de 2014, mas também no dados dos três anos anteriores. Esta foi a versão contada aos deputados por Rocha Andrade.

O que se tinha passado, explicou, foi que os dados das transferências entregues pelos bancos (declarações do Modelo 38) “não tinham sido correctamente extraídos” para o sistema central da AT. Mas a razão de isso ter acontecido é que ainda está por explicar, erro que está a ser alvo da auditoria pedida à Inspecção-Geral de Finanças (IGF), que será conhecida em Março.

PÚBLICO -
Aumentar

A consequência desta falha foi a de que a “omissão de dados não afectava só a publicação, mas todo o controlo inspectivo”, disse Rocha Andrade, referindo que, pelas informações que detém, esta situação não era nem do conhecimento do director-geral da AT à época nem do ex-secretário de Estado. “Não tenho indicação de que tenha havido indicação política ou técnica" para omissão dos dados, referiu.

Mas fez questão de sublinhar mais do que uma vez que foi por causa “da publicação e da atenção que o processo da publicação” suscitou que se descobriram os 10.000 milhões de euros. Rocha Andrade admitiu a hipótese de que, num cenário em que o anterior governo tivesse publicado as estatísticas (o que não aconteceu de 2011 a 2015), os dados até teriam sido eventualmente divulgados com omissões “numa primeira fase” mas argumentou que a continuação da publicação das estatísticas teria permitido encontrar essas divergências numa segunda fase – e não só agora.

O deputado do PSD António Leitão Amaro quis saber se o novo software foi preparado ainda em 2015 (durante o anterior Governo). Rocha Andrade assumiu que não foi ele que ordenou “especificamente” a mudança para a nova ferramenta. E pouco depois desfazia as dúvidas: a mudança foi determinada pelo novo subdirector-geral para a área dos sistemas de informação. O lugar estava vazio, o Governo anulou o concurso anterior que estava por concluir, alterou “ligeiramente o perfil” do cargo e abriu um novo concurso, descreveu o actual secretário de Estado.

Pode haver impostos por cobrar

Sobre se há ou não impostos perdidos, Rocha Andrade diz que a questão não pode ser vista apenas atendendo ao facto de o prazo para o direito à liquidação dos impostos relacionados com factos tributários relativos a centros offshores ser de 12 anos – uma medida introduzida no Orçamento de 2012 e que de manhã tinha levado Paulo Núncio a afirmar categoricamente que “não há impostos perdidos”.

“Não posso dar a garantia de que não haja impostos perdidos”, contrapôs depois Rocha Andrade, dizendo até que há “controversa doutrinária” sobre prazos. Os dados relativos às transferências para offshores “não são apenas usados para controlar o imposto [eventualmente] devido nessas operações”, mas para a restante actividade daquele contribuinte. “[Dizer que] não há perda de receita fiscal – eu não a posso garantir; também não posso garantir [que haja impostos em falta]”, insiste Rocha Andrade.

Notícia corrigida às 12h33 de 2 de Março de 2017: Rectificada a entrada da notícia, para referir que o dinheiro transferido para o Panamá em 2014 estava quase todo oculto, e não que o dinheiro oculto dos offshores foi quase todo para o Panamá.

Sugerir correcção
Ler 19 comentários