Paulo Núncio explicou-se muito, muito mal

Rocha Andrade foi infinitamente mais sólido e convincente e ficou esclarecido quem está cheio de vontade de mostrar e quem está cheio de vontade de esconder.

Paulo Núncio a explicar o apagão das offshores parecia Mário Centeno a explicar as declarações de património dos administradores da Caixa — quanto mais falava, menos convencia. Desde logo, convém assinalar que o Paulo Núncio do dia 1 de Março desmentiu categoricamente o Paulo Núncio do dia 24 de Fevereiro. O Paulo Núncio do dia 24 de Fevereiro respondeu por escrito ao DN sobre a não divulgação das transferências para paraísos fiscais afirmando que ela “não estava dependente de uma aprovação expressa”, ou seja, que a culpa era do fisco. Já o Paulo Núncio de dia 1 de Março disse outra coisa: “A não divulgação de estatísticas deveu-se ao facto de eu ter dúvidas na altura se as devia publicar ou não.” Numa semana, a culpa passou do fisco para si, o que até é bonito — só se esqueceu de explicar por que razão a sua primeira tentação foi mentir.

Primeiro nariz torcido: quando se reage a uma notícia verdadeira com uma aldrabice de perna curta é muito provável que haja alguma coisa importante para esconder. Segundo nariz torcido: as justificações para a não divulgação da informação estatística foram absurdas. Paulo Núncio adiantou duas razões. A primeira: “Achei que a publicação podia constituir um alerta para os infractores relativamente ao nível e à quantidade de informação de que a administração fiscal dispunha sobre as transferências para paraísos fiscais e que isso podia prejudicar o combate à fraude e à evasão fiscal.” Em resumo: Paulo Núncio não queria que se divulgasse informação com detalhe a mais, pois os trafulhas poderiam aproveitar. Segunda razão: “A informação que me foi enviada era uma informação abrangente que não distinguia as operações comerciais das operações que poderiam dar origem a um qualquer tipo de imposto, e eu entendi que a publicação daquela informação em bruto poderia levar a interpretações incorrectas.” Em resumo: Paulo Núncio não queria que se divulgasse informação com detalhe a menos, pois as pessoas poderiam não perceber.

Ou seja, Paulo Núncio não divulgou os dados das transferências para offshores porque eles tinham informação a mais, ao mesmo tempo que não os divulgou porque tinham informação a menos. Basicamente, o senhor esteve a gozar connosco. Não só o Paulo Núncio do dia 1 de Março desmentiu o Paulo Núncio do dia 24 de Fevereiro, como o Paulo Núncio de dia 1 de Março se desmentiu a si próprio. E dado que no decorrer da sua longa intervenção o antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais disse ainda que “não conhecia as estatísticas, porque nunca quis saber qual o valor das transferências”, somos obrigados a concluir que Paulo Núncio nunca quis saber o que não sabia que sabia. Azar o dele: o actual secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade, foi infinitamente mais sólido e convincente, e portanto qualquer alminha não fanatizada ficou esclarecida sobre quem está cheio de vontade de mostrar e quem está cheio de vontade de esconder.

O que Rocha Andrade afirmou é gravíssimo. Afinal, os 10 mil milhões de euros não fugiram só das estatísticas, fugiram também à inspecção. Afinal, as transferências ocultas são de maior valor do que as registadas. Afinal, 97,7% das transferências relativas ao Panamá estão nas ocultas. Perante isto, só dá para acreditar em erro informático se o computador do fisco tiver sido oferecido por Ricardo Salgado. Não me venham com politiquices: isto é muito sério. O caso do apagão tem de ser investigado até ao fim.

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