Cheias e ondas de calor na Europa em 2023 causaram danos de 13 mil milhões de euros

Temperaturas elevadas, enormes incêndios, chuvas catastróficas: relatório faz retrato das alterações climáticas num ano de extremos no continente europeu, marcado por um recorde de emissões de CO2.

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Carros presos numa ponte rodeada de águas da cheia provocada pela tempestade Daniel na Grécia, a 7 de Setembro de 2023 Stergios Spiropoulos/REUTERS
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O ano de 2023 foi o mais quente das nossas vidas, se fizermos as contas para todo o planeta. Já na Europa, ficou praticamente empatado com 2020, apenas umas décima de grau abaixo, diz o relatório sobre o Estado do Clima na Europa em 2023, divulgado pelo programa europeu Copérnico nesta segunda-feira. Mas foi um ano pleno de contrastes e recordes, em que longas ondas de calor castigaram umas zonas enquanto chuva acima do normal e inundações catastróficas marcaram outras, causando prejuízos estimados superiores a 13 mil milhões de euros.

“Alguns dos fenómenos registados em 2023 surpreenderam a comunidade científica por causa da sua intensidade, velocidade com que surgiram, extensão e duração”, comentou Carlo Buontempo, director do Serviço de Alterações Climáticas (C3S) do programa de observação da Terra Copérnico, da Comissão Europeia, na conferência de imprensa online em que foi apresentado o relatório, elaborado em conjunto com a Organização Meteorológica Mundial (OMM, uma agência das Nações Unidas).

O ano de 2023 no continente europeu foi entre 0,13 e 0,17 graus mais fresco do que 2020, o ano mais quente até agora na Europa. Mas se olharmos para os valores que se estima terem sido os normais antes da Revolução Industrial, quando começámos a emitir gases com efeito de estufa para a atmosfera, a temperatura média de 2023 na Europa foi 2,48 a 2,58 graus acima dos níveis de referência.

Calor, incêndios e chuva

Houve em 2023 vários recordes relacionados com o clima, tanto a nível global – como os dois dias de Novembro, 17 e 18, em que a temperatura média da Terra foi dois graus acima da que se estimava ser antes da Revolução Industrial – como na Europa, salienta o relatório.

Vejamos: tivemos o maior número de dias com “stress extremo devido ao calor” e a maior área de sempre na Europa afectada por “forte stress devido ao calor” (41% do Sul da Europa esteve nessas condições, no pico da onda de calor de Julho).

Houve ainda o maior incêndio florestal jamais registado na União Europeia (as chamas que lavraram na Grécia em Julho e Agosto, numa área de 960km2, duas vezes a dimensão de Atenas).

Registou-se ainda a onda de calor marinha mais forte de sempre no Atlântico Nordeste, junto à Irlanda, quando a temperatura da água à superfície chegou a estar cinco graus acima da média; e alguns rios europeus nunca tiveram um fluxo de água tão abundante.

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Outra marca do ano de 2023 na Europa foi precipitação abundante e cheias – cerca de 1,6 milhões de habitantes do continente foi afectada por inundações, e estas causaram 81% dos 13 mil milhões de euros de prejuízos estimados (os cálculos são ainda provisórios).

Embora tenha havido seca em algumas zonas da Europa, como o Sul da Península Ibérica, a quantidade de precipitação esteve 7% acima dos valores médios. Dependendo da base de dados usada, foi o ano mais chuvoso ou o terceiro mais chuvoso desde que há registos, salienta o relatório.

Isto não é surpreendente: o ar mais quente mantém mais humidade, potenciando episódios de chuva – que podem ser súbitos e intensos, em vez de distribuídos no tempo.

Embora grandes rios europeus, como o Ebro (Espanha) ou o Pó (Itália), tenham secado até perto dos valores mais baixos de sempre, na primeira metade do ano, em cerca de um quarto dos rios europeus, o fluxo tornou-se muito mais elevado do que a média em Novembro. Em Dezembro, estes rios tinham o maior fluxo de água desde que há registos, ajudados pelas grandes tempestades nos três últimos meses do ano.

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Mas o Verão também foi anormalmente húmido. Por exemplo, em Agosto, dois terços do território da Eslovénia foram atingidos por uma inundação, afectando 1,5 milhões de pessoas. Noruega e Suécia também tiveram cheias nesse mês; na Noruega, uma barragem hidroeléctrica entrou parcialmente em colapso.

Em Setembro, Grécia, Bulgária e Turquia tiveram uma precipitação recorde e inundações. Em alguns locais na Grécia, choveu num único dia tanto por causa da tempestade Daniel como deveria chover num ano; essa tempestade teve efeitos catastróficos na Líbia, quando barragens colapsaram e houve uma inundação catastrófica na cidade de Derna. Em Dezembro de 2023, havia pelo menos 4800 mortes confirmadas – e 8000 desaparecidos.

Incluir a saúde na adaptação

Os planos de adaptação às alterações climáticas dos países europeus ainda levam pouco em conta os riscos que colocam para a saúde pública – este é um dos pontos de destaque do relatório. “Temos avançado, mas há ainda muito trabalho a fazer”, disse Andrew Ferrone, da OMM, um dos autores do relatório.

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A destruição de Derna, depois da inundação provocada pela tempestade e rebentamento das barragens Zohra Bensemra/REUTERS

Menos de um quarto das nações signatárias do Acordo de Paris integraram a saúde nos seus planos de adaptação, conclui o documento. Só 12 dos 50 países europeus que o assinaram deram esse passo. Apenas cinco sublinham o risco acrescido de ferimentos e mortalidade no caso de fenómenos meteorológicos extremos e doenças transmitidas por vectores, como mosquitos, que progridem para novas zonas geográficas à medida que o aquecimento aumenta.

“Em Julho de 2023, pela primeira vez, o gabinete europeu da Organização Mundial da Saúde considerou uma emergência de saúde pública a crise climática e os fenómenos meteorológicos extremos, para melhor coordenar esforços e ajudar os países afectados a lidar com os problemas que se colocavam”, salientou. A mortalidade relacionada com o excesso de calor na Europa aumentou 30% nos últimos 20 anos, afirmou. E 23 das 30 ondas de calor mais graves desde 1950 aconteceram a partir de 2000, cinco delas nos últimos três anos.

“O maior impacto é em zonas urbanas, onde vive a maior parte das pessoas, porque as cidades estão a aquecer mais rapidamente do que outras áreas”, disse Andrew Ferrone. “É necessário pôr em prática medidas de adaptação para que os países passem da gestão de crises para a gestão de riscos. É fundamental haver sistemas de alerta dos riscos para a saúde do calor excessivo”, frisou.

Gases de estufa aquecem oceanos

Os oceanos da Terra absorvem mais de 93% do calor em excesso que há no planeta por causa das alterações climáticas. Mas nunca estiveram tão quentes como em 2023 (e continuam, em 2024). A temperatura à superfície dos mares que banham a Europa esteve 0,55 graus acima da média.

Essa foi uma tendência a nível global, mas o Atlântico Nordeste, que banha a Europa, chegou a estar 1,76 graus acima da média, entre Maio e Outubro, com um pico de condições excepcionais de Junho.

Embora ao largo de Portugal a temperatura do Atlântico tenha batido recordes, junto à costa, registou-se o fenómeno de afloramento costeiro, ou upwelling. Este fenómeno oceanográfico caracteriza-se pela deslocação das águas superficiais provocada pelo vento, que leva a um “afloramento de águas profundas, mais frias”.

O fenómeno climático El Niño, que faz com que a água superficial do Pacífico tropical aqueça à superfície e se formou em meados do ano no Pacífico equatorial – e está a começar a dissipar-se –, não explica tudo, salientou Samantha Burgess, vice-directora do C3S. “A camada do oceano que mais aquece é a das águas superficiais, que estão em contacto directo com a atmosfera, e este ano tivemos uma concentração recorde de gases com efeito de estufa”, recordou.

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A concentração dos principais gases com efeito de estufa (dióxido de carbono ou CO2 e metano) na atmosfera atingiu em 2023 os níveis mais altos de sempre, segundo os satélites do Copérnico. O CO2 atingiu 419 partes por milhão (ppm), enquanto a concentração de metano é de milhares de milhões de partes por milhão (ppmm: a escala é diferente, porque há muito mais CO2 do que metano na atmosfera, embora este gás tenha um efeito de estufa ainda mais potente).

Desde 1993, a quantidade de calor no oceano aumentou 0,22 graus a nível global, e 0,04 graus se considerarmos apenas o Atlântico Nordeste. “Mas o aquecimento mais rápido está a acontecer nos 300 metros superiores do oceano, e menos intensamente até aos 700 metros”, explicou Samantha Burgess. Só se fazem medições até 2000 metros de profundidade, o que não permite contabilizar o calor que possa ser libertado por erupções de vulcões submarinos, por exemplo. “Por isso, sabemos que a fonte de calor está a vir da atmosfera”, salientou.

Se o planeta tem os oceanos mais quentes, a subida do nível do mar acelera. Desde 1993, o nível médio do mar avançou 10,3 centímetros e, nos últimos dez anos, a velocidade da subida anual da água mais do que duplicou: passou de 2,1 milímetros (mm) entre 1993 e 2003 para 4,3 mm.

Os cientistas calculam que, com cada centímetro de subida do nível do mar, cerca de seis milhões de pessoas em todo o planeta ficam expostas aos riscos de cheia. E a taxa de derretimento dos gelos da Antárctida e da Gronelândia, que preservam 58% da água doce da Terra, está a acelerar: aumentou entre três (Antárctida) e cinco vezes (Gronelândia) desde 1980.

A chave está nas emissões

Resumindo, foi um ano marcado por fenómenos climáticos extremos, que afectaram grandes porções do território europeu e causaram muitos prejuízos. “Infelizmente, é improvável que diminuam, pelo menos no futuro próximo: tanto as observações directas como os modelos apontam para um aumento da sua gravidade e frequência”, concluiu Carlo Buontempo.

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A Europa é o continente que está a aquecer mais depressa – a temperatura está a subir a uma taxa duas vezes superior à do resto do mundo. Os três anos mais quentes desde que há registo aconteceram desde 2020. “O que não sabemos ainda é se 2023 foi uma excepção, um pico na rota de aquecimento do planeta ou se está a registar-se uma transição no clima do nosso planeta”, comentou Samantha Burgess.

O que os cientistas sabem de certeza é que o aumento das emissões de gases de estufa é o principal factor que está a causar este aquecimento excessivo dos últimos anos. “Representa talvez metade do motivo, e factores de variabilidade natural, como a quantidade de aerossóis, ou a fase do ciclo solar em que estamos, outro terço”, explicou Burgess. O mistério está no que falta nesta conta.

“Mas vamos continuar a bater recordes, até conseguirmos chegar à neutralidade carbónica [retirar da atmosfera tanto CO2 como aquele que emitimos] e estabilizarmos o clima”, concluiu a cientista do C3S.