Ondas de calor no mar trazem mortalidade em massa de várias espécies

Este ano, os oceanos têm febre. O Mediterrâneo chegou a mais de 30 graus e o Atlântico acima de 24. Os cientistas estão a estudar os efeitos deste calor sobre a vida marinha. Veja o mapa.

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A imagem de um recife doente GettyImages
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O recife de Sombrero, na Florida, que abriga um ecossistema diverso, terá sofrido diversos danos com o aumento da temperatura das águas christian wheatley/GettyImages
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Estamos sempre a ouvir falar de “ondas de calor”, quando os dias quentes se tornam uma ameaça. Mas aquilo de que estamos a falar, normalmente, é de um fenómeno que ocorre em terra firme, onde andamos com os nossos dois pés. E quando é no mar que a temperatura sobe de forma inusitada, como tem acontecido desde a Primavera no Atlântico e no Mediterrâneo? Mortandade em massa e espécies invasoras são algumas das consequências de ondas de calor marinhas.

Primeiro, os números. Em Julho, a temperatura da água à superfície no Mediterrâneo chegou a 28,1 graus Celsius. “Mas estes são valores médios, localmente a temperatura pode atingir valores mais elevados nos últimos meses. Por exemplo, a 19 e 20 de Julho, foi mais de 30 graus ao largo da Sicília e quase 30 graus a norte da Tunísia”, disse ao PÚBLICO Marie Drevillon, especialista em análise e previsão da Mercator Ocean Internacional. Esta é uma organização sem fins lucrativos que está em vias de se tornar um organismo intergovernamental, em que Portugal também participa. Foi encarregue pela Comissão Europeia de pôr de pé o serviço de monitorização dos oceanos do programa europeu de observação da Terra Copérnico.

No Atlântico norte, a temperatura continua a aumentar e chegou já a uma média acima de 24,5 graus. Para o oceano global, excluindo os pólos, “atingiu-se um valor médio de 21,1 graus em Abril e outra vez em Julho”, avançou Marie Drevillon, numa resposta por email ao Azul, para a qual contribuíram também outros cientistas ligados à mesma organização: Maria Grigoratou, Lorena Moreira Mendez e Florian Carabin (empresa CELAD para a Mercator Ocean International).

Limiares nunca ultrapassados

“Estes limiares nunca antes tinham sido ultrapassados, fosse qual fosse o tipo de registo de temperatura da água à superfície (que começou à escala global em 1981, graças às medidas por satélite)”, dizem os cientistas.

Mas não chega a água estar quente. Tal como em terra, é preciso que se verifiquem um determinado número de critérios para podermos dizer que há uma onda marinha: é preciso que a temperatura da água ultrapasse o limite da variabilidade da época (normalmente o percentil 90) durante pelo menos cinco dias. Ondas de calor sucessivas com intervalos de dois dias ou menos são consideradas parte do mesmo acontecimento

Quais são as consequências para a vida marinha, para os animais e plantas que têm de se confrontar com uma mudança brusca das condições do seu habitat? Há várias coisas que se podem passar, que já aprendemos com ondas de calor anteriores (ver mapa). Pode haver mortalidade em massa de algumas espécies que não se conseguem migrar, como corais.

Por exemplo, na Florida, onde a temperatura da água chegou em Julho a 38 graus, a Fundação para o Restauro de Corais identificou uma mortalidade de 100% no recife Sombrero, apontam Marie Drevillon e colegas.

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No Atlântico, há indícios de perturbação na base da cadeia alimentar. “No Nordeste do Atlântico, existem alguns sinais de que foi mais reduzido do que o habitual o florescimento da Primavera de fitoplâncton, que foi detectado ao mesmo tempo em que ocorriam ondas de calor das categorias de forte a severa”, diz a cientista. “Este fenómeno vai ser mais estudado e monitorizado, juntamente com impactos ambientais como a perda de oxigénio [na água]”, explica.

Sobre a onda de calor marinha no Mediterrâneo, provavelmente ainda é cedo demais para determinar quais serão os seus efeitos sobre a vida marinha, responde Marie Drevillon. “Mas temos a experiência da última década, em que o ecossistema do Mediterrâneo enfrentou já ondas de calor marinhas cada vez mais intensas e duradouras e fenómenos de mortalidade em massa de várias espécies marinhas. Em especial de espécies que não podem migrar durante estes episódios, como plantas e corais, crustáceos e moluscos”, salienta.

Há outra possível consequência das ondas de calor marinhas no Mediterrâneo: podem ser a porta de entrada para espécies tropicais invasivas, que venham do Mar Vermelho através do Canal do Suez, diz a investigadora. “Algumas destas espécies são muito competitivas por recursos e espaço, e quando as condições ambientais o permitem, como as temperaturas elevadas, podem conquistar habitats a espécies mediterrânicas que são importantes para a biodiversidade local e para a economia”, alerta.

Em suma, as ondas de calor marinhas perturbam o ecossistema e interagem com outros parâmetros ambientais, diz Marie Drevillon. “Isso pode favorecer o florescimento de algas prejudiciais, a proliferação de bactérias e outras ameaças.”

No Mediterrâneo a temperatura da água já baixou — mas pode subir outra vez, e rapidamente, dependendo das condições meteorológicas. A tendência é para que os oceanos continuem excepcionalmente quentes, pelo menos durante o resto do Verão. “Em particular no Atlântico tropical, onde o El Niño tem influência”, sublinha a cientista da Mercator Ocean International.

Factor El Niño

O padrão climático El Niño já começou e é provável que seja forte. “Espera-se que chegue à maturidade antes do fim de 2023, o que deve confirmar a quebra de recordes de temperatura durante o ano de 2023, pois funciona como se adicionássemos uma ‘pequena’ flutuação de aquecimento em cima da tendência de longo prazo que se deve às alterações climáticas.

A elevada temperatura do mar à superfície pode ainda consequências sobre a meteorologia. “As altas temperaturas e o calor que se está a acumular no oceano até ao fim do Verão nestas áreas vão ter um papel na intensificação de tempestades, quando começar a estação das tempestades” no Atlântico, adianta Marie Drevillon. O El Niño também influencia a época de furacões no Atlântico – “é algo a que os centros de previsão meteorológica estarão muito atentos nos próximos tempos”, nota.

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