Carlo Buontempo sobre o clima em 2023: “Nunca vimos nada assim nos últimos milhares de anos”

“Estamos a ver um clima que já é muito diferente do clima a que estamos habituados”, garante, em entrevista, o director do serviço de alterações climáticas do Copérnico.

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O ano de 2023 tem sido um ano de recordes de temperatura e de avisos climáticos. O Verão deste ano foi o mais quente desde que há registos, com a temperatura média nos meses de Junho, Julho e Agosto a ser a mais elevada a nível global desde 1940. Houve perdas de gelo marinho que levaram a mínimos históricos, ondas de calor com durações recorde em várias partes do mundo, assim como secas e incêndios que devastaram a Grécia e o Canadá – e, ao mesmo tempo, tempestades intensas mesmo durante os meses de Verão.

“Estamos a ver um mundo que nunca vimos antes”, diz-nos Carlo Buontempo, director do serviço de alterações climáticas (C3S) do programa europeu Copérnico, frequentemente citado em notícias quando se registam estes recordes. O cientista climático falou com o Azul antes do painel em que participou na cimeira Digital with Purpose, que decorreu na Altice Arena, em Lisboa, de 27 a 29 de Setembro.

Este serviço europeu liderado por Buontempo fornece dados climáticos e informação sobre as tendências do clima relativos à Europa e ao resto do globo, o que se torna ainda mais necessário quando estamos em plena crise climática. E quando já se adivinha que o ano de 2023 está prestes a tornar-se o ano mais quente desde que há registos.

Este foi um ano de recordes de temperatura. Poderá ser um vislumbre do que nos espera no futuro?
Sim. Por vezes, os jornalistas perguntam-me se isto é o novo normal e, infelizmente, não penso que seja, porque um novo normal indicaria que isto vai ficar como está. E não vai. É a proverbial ponta do icebergue: estamos a ver o início de um clima que já é muito diferente do clima a que estamos habituados. Para mim, 2023 é provavelmente um dos primeiros anos em que nos apercebemos que as alterações climáticas não são algo que vai acontecer dentro de 20 anos. As alterações climáticas já aconteceram e estão a acontecer no mundo que nos rodeia.

Já estamos a sentir os seus efeitos...
Sem dúvida. Estamos a ver um mundo que nunca vimos antes: na nossa vida, sim, mas também um mundo que não existia na vida dos nossos antepassados. Todo o sistema está completamente fora do que a nossa história humana alguma vez viu.

Este Verão foi um exemplo disso mesmo. Na Grécia, por exemplo, em que vimos extremos de incêndios e de precipitação...
Sim. Continuaremos a ver estes extremos. Penso que há um elemento de precaução porque, embora estimemos que certos tipos de extremos se tornem mais extremos devido às alterações climáticas, também temos de ter em conta o facto de que existe uma variabilidade natural e que alguns destes acontecimentos bizarros acontecem de vez em quando, ainda que sejam raros. Por isso, é importante analisar cada uma destas ocorrências. Preocupamo-nos e fazemos declarações sobre a relação com as alterações climáticas quando essas declarações são devidas.

Por vezes é difícil dizer logo se uma certa catástrofe pode estar directamente relacionada com alterações climáticas?
É uma área de investigação que está a crescer e ainda há lacunas por preencher. Há vezes em que não se pode dizer que uma inundação é decorrente das alterações climáticas, mas o que se pode dizer é que este tipo de eventos se tornou mais provável de ocorrer por causa das alterações climáticas. É uma área em que há muita investigação activa. E queremos fazer mais no futuro, é extremamente importante. É importante para os cidadãos, mas também quando olhamos para a questão das perdas e danos e da discussão a nível global sobre responsabilidade.

Em relação às temperaturas recordes deste ano, diria que existe também uma tendência para que este Inverno seja quente no hemisfério Norte?
Na Europa existe uma tendência tanto para o Verão como para o Inverno, isso é bastante claro nos dados que temos. Nesse sentido, sim, podemos esperar em média que o Inverno se torne mais ameno e o Verão mais quente. Agora, ainda é cedo para dizer se este Inverno será mais um de recordes ou não. Mas sim, há uma tendência para que isso aconteça. É um pouco como no Verão, em que em Abril ainda nos é difícil dizer se será um Verão de recordes ou não. Mas, se olharmos para a média dos últimos Verões, e tentarmos visualizar como é que os próximos serão, podemos dizer com elevado grau de confiança que estamos a caminhar para Verões mais quentes.

Como quando dizem que este pode ser o Verão mais frio da nossa vida...
Sim, também o digo. Um dos mais frios. Não podemos dizer que vá ser o mais frio porque há alguma variabilidade que temos de ter em conta, mas a tendência é clara.

Por vezes pode ser difícil explicar que existe esta variabilidade, mas que sabemos que as alterações climáticas têm um impacto inegável?
Somos todos maus a dar ouvidos aos peritos. Muitas vezes não se gosta de ouvir ou desconfia-se, mas acho que somos bons a reagir quando sentimos a tensão. Nesse sentido, penso que os últimos meses foram um ponto de viragem. Quando vemos 40 graus em Maio, ondas de calor, nunca vi nada assim na minha vida. Quando vemos 40 graus no Reino Unido... não é comum, nunca aconteceu. Ou quando vemos o derretimento recorde de quilómetros cúbicos de gelo em 2022. É uma quantidade enorme de gelo, não é? Portanto, estas coisas estão realmente a mudar a paisagem à nossa volta. E penso que o estamos a sentir. Está diante dos nossos olhos. E talvez mude um pouco a conversa.

Há muitos sinais de aviso, certo?
Sim, é um mundo diferente. Essa é a realidade. Como vemos quando olhamos para a temperatura dos oceanos... normalmente, vemos um ciclo anual na temperatura global do oceano que sobe e desce. Este ano, subiu e ficou assim, não desceu realmente. Nunca vimos nada assim nos nossos registos que datam dos anos 1940. Mas nunca vimos nada assim nos últimos milhares de anos.

Fica surpreendido enquanto cientista?
Sim e não. Não porque, de certa forma, isto está completamente alinhado com o que os cientistas climáticos andam a dizer nos últimos 30 anos. E sim porque, se soubéssemos tudo, não haveria razão para estudar o clima. Mesmo este ano houve eventos que realmente deixaram muitos cientistas climáticos em choque. Como a perda de gelo na Antárctida, que é impressionante e ainda não temos um conhecimento total de como aconteceu. Ou o aumento da temperatura no Atlântico Norte. Há surpresas, não sabemos tudo, mas gosto de acreditar que sabemos o suficiente para dar informações úteis à sociedade.

Falando nessa informação útil: acha que os decisores políticos estão a agir com base nessa informação?
Os decisores respondem às prioridades da sociedade. Ainda que tenhamos visto uma mudança nessas prioridades na sociedade, acredito que os decisores acabem por fazer o seu trabalho. Para os decisores, a mudança já aconteceu. Se olharmos para o sector privado, há muito interesse em dados climáticos. Saber qualquer coisa sobre o futuro tem valor, pode tirar-se partido dessa informação. O sector financeiro, o sector da energia estão muito activamente a olhar para dados climáticos.

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Carlo Buontempo na cimeira Digital with Purpose SYNCVIEW/DR

Mas os políticos estão a fazer o suficiente para travar a crise climática?
Como cientista, o meu papel é dizer como é que o clima está a mudar. Sabemos a razão pela qual está a mudar e o que é preciso ser feito para limitar esse aquecimento. E é aí que chegamos. Os 1,5 [graus de aquecimento] estão a aproximar-se e há pouco que possamos fazer. A decisão que os decisores políticos tomem hoje terá impacto no lugar em que estaremos a 30 anos ou no final do século. É uma decisão, temos o poder de tomar várias decisões, que temos de tomar enquanto sociedade e enquanto políticos. Há vantagens e desvantagens. Há mais desvantagens em não chegar à neutralidade carbónica de forma rápida. O certo é que, se não chegarmos a essa neutralidade carbónica muito em breve, então chegaremos aos dois graus [de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais]. Isso é bastante evidente nos dados que temos.

E isso teria consequências na vida que temos, incluindo em populações mais vulneráveis...
Sem dúvida. É o que diz o IPCC: quanto mais sobe a temperatura, maior o impacto.

O ano de 2016 foi, por agora, o ano mais quente desde que há registos. É provável que o ano de 2023 se torne o mais quente?
Há boas hipóteses de isso acontecer, sim, e sairá mais informação sobre isto na próxima semana. Mas se virmos como foi a Primavera, depois Julho e Agosto e, agora, Setembro... sempre muito quentes. É fácil chegar à conclusão.

Também há impacto do El Niño? Pode ter impacto ainda este ano ou já estamos a sentir efeitos?
O El Niño é uma flutuação natural da temperatura do oceano Pacífico e sabemos que durante o El Niño costumamos ter os máximos em termos de temperatura média global. Foi uma das razões que levou a OMM [Organização Meteorológica Mundial] a dizer que havia uma grande probabilidade de 2024 ser um ano de recordes por causa do El Niño. Agora o El Niño foi declarado no início de Julho.

O impacto global do El Niño é sentido de forma mais forte quando a anomalia chega ao centro do Pacífico. Penso que ainda não vimos toda a resposta que teremos por causa do El Niño. Essa é uma. Outra é que estamos num mundo diferente, portanto não é certo que o impacto típico do El Niño seja visível este ano, porque, da mesma forma que o Pacífico está a ficar mais quente, também o Atlântico Norte está, também estão os mares do Sul. Alguns efeitos podem ser diferentes do esperado.

Há incerteza?
Muitas vezes analisamos estes efeitos com base nos casos anteriores e ver o efeito quando há o El Niño. Olhamos para todos os El Niño e vemos o padrão comum. Mas agora estamos num mundo diferente, portanto, será que esta é uma boa abordagem para o que irá acontecer? Não sabemos.

O serviço C3S do Copérnico, que dirige, transmite muitas informações à população sobre as consequências das alterações climáticas. Teme que possa haver alguma fadiga climática?
Sim, acredito que possa haver fadiga climática. Depende muito da forma como falamos do clima. Após algum tempo, ficamos todos cansados de ouvir falar de desastres e de sentirmos esta sensação de culpa. Estes fenómenos estão a acontecer e nós temos responsabilidade.

Mas, para mim, também é importante frisar outros elementos na discussão. Há algumas surpresas, mas há tanta coisa que sabemos. Para mim, é importante comunicar o facto que esta informação existe e a maior parte destes dados são gratuitos e acessíveis e podem ser usados. Podemos usar esse conhecimento para informar as nossas decisões. Depende de onde queiramos pôr a tónica: na fatalidade, ou ao sermos honestos com a situação em que estamos, que não está com muito bom ar, mas temos opções. E podemos usar a nossa inteligência e capacidade colectivas para mudar a trajectória.

Qual a medida climática mais urgente?
Depende de qual for o nosso objectivo. Se o objectivo for limitar o aumento da temperatura, é óbvio: temos de chegar a zero emissões. E quanto mais cedo chegarmos, melhor. Depende do que queiramos. Se queremos ter um mundo com quatro graus de aquecimento... [risos]

Se o mundo já é diferente agora, imagino com quatro graus...
Sim, não recomendaria.

Sobre o que vai falar aqui na cimeira hoje [quinta-feira, 28 de Setembro]?
Estou nesta sessão sobre os limites do planeta e vou falar sobre as observações e modelações feitas por satélite para nos ajudar a perceber como é que o mundo está a mudar. A cada dia podemos ver onde estamos em tempo real. Para mim, a grande parte transformativa nisto que fazemos é que não podíamos fazer nada disto antes. Não podíamos saber qual era a temperatura global hoje ou qual era o estado dos glaciares, qualquer uma destas grandes variáveis que são importantes para estudar o clima. E agora podemos. Podemos ter um snapshot constante disto. Temos de melhorar a forma como usamos esta informação.

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