Seca, ondas de calor, degelo: o retrato de uma Europa 2,3°C acima da média

Relatório sobre o Estado do Clima na Europa 2022 traça um retrato do continente que mais aquece no mundo. Electricidade de fontes renováveis ultrapassou gás pela primeira vez.

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Reservatório Conde de Guadalhorce, em Málaga, Espanha Nuno Ferreira Santos
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Não é novidade que a Europa é um hotspot das alterações climáticas, mas o novo relatório da Organização Mundial de Meteorologia (OMM) sobre O Estado do Clima na Europa 2022, elaborado em parceria com o Serviço de Alterações Climáticas do Programa Copérnico, ​traz novos dados actualizados sobre o continente que mais aquece no mundo. No ano passado, a Europa registou uma temperatura média 2,3 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais, num ano caracterizado por ondas de calor, seca e derretimento de glaciares.

“Isto é um retrato da mudança climática acelerada a que estamos a assistir por todo o mundo, mas sobretudo na Europa”, explica ao Azul o climatologista Álvaro Pimpão Silva, um dos contribuidores do relatório. “A Europa é uma das regiões que está a aquecer mais rapidamente a nível global”, complementa.

O que significa este 2,3°C de aquecimento da Europa acima dos valores pré-industriais? Estamos a perder a corrida para nos mantermos abaixo do aumento de 1,5°C? “É alarmante, mas não significa que estejamos já, e de uma forma persistente, acima de 1,5°C a nível global”, explica Álvaro Pimpão.

Como já alertam vários relatórios até agora, ultrapassar este valor “vai ser cada vez mais frequente à medida que caminhamos para o futuro” - aliás, não apenas na Europa, mas a nível global, esse limite já foi pontualmente ultrapassado algumas vezes desde 2016 -, mas “este grau e meio de aquecimento global é um limite a nível global para um período relativamente longo de tempo, de 20 a 30 anos”, descreve o climatólogo.

Calor e seca

Já no ano passado o relatório da OMM sobre a Europa relativo a 2021 anunciava que a temperatura média do território estava a aumentar o dobro da média mundial nos últimos 30 anos. Em Abril deste ano, o Serviço de Alterações Climáticas do Programa Copérnico lançou uma versão do relatório sobre o Estado do Clima na Europa abrangendo o território geográfico da União Europeia, com conclusões semelhantes.

Por todo o continente, em 2022, a tendência manteve-se e os fenómenos climáticos e meteorológicos resultaram em mais de 16 mil mortes, na sua grande maioria devido às ondas de calor registadas no Verão. No ano passado, o continente registou o Verão mais quente de sempre, com destaque para a onda de calor particularmente forte em meados de Julho, com recordes de temperatura em vários países: a 19 de Julho, o Reino Unido registou pela primeira vez mais de 40°C; uns dias antes, a 14 de Julho, a estação meteorológica de Pinhão, em Viseu, registava a temperatura de 47°C, um novo extremo para o mês de Julho em Portugal continental.

A Península Ibérica registou o seu quarto ano consecutivo de seca, com reflexos dramáticos nos reservatórios de água, mas a situação foi também “bastante preocupante” por todo o continente, nota Álvaro Silva, descrevendo que os baixos níveis dos caudais dos rios levou mesmo a “interrupções na produção de energia hidroeléctrica e até mesmo impacto ao nível das centrais nucleares em França”.

A combinação de tempo seco com calor extremo, descreve o relatório, também atiçou incêndios florestais que atingiram a segunda maior área queimada de sempre, com grandes incêndios em países como França, Espanha, Portugal, Eslovénia e República Checa.

Degelo

E se algumas regiões foram mais atacadas por ondas de calor, outrou locais habitualmente mais quentes sofreram vagas de frio e neve, incluindo Turquia, Síria, Grécia e Montenegro. No final do ano, a capital islandesa, Reiquiavique, registou o Dezembro mais frio dos últimos 100 anos.

Mas também nas zonas habitualmente geladas a situação é preocupante. O ano passado foi o terceiro ano de seca nas regiões dos Alpes e dos Pirinéus. Nos Alpes europeus, por exemplo, a falta de precipitação (em particular de neve no Inverno), aliada ao calor no Verão, contribuiu para recordes de degelo. Também a calota polar da Gronelândia continuou a perder massa durante o ano, em particular durante o período de calor excepcional registado em Setembro de 2022.

Por fim, outro dos indicadores preocupantes sobre o ano de 2022 é o aumento da temperatura da superfície do mar, em particular na área do Atlântico Norte, com vários episódios de ondas de calor marinhas. “Isto tem impactos ao nível dos ecossistemas marinhos e das próprias espécies, que migram, porque não se conseguem adaptar a estas novas condições, ou simplesmente desaparecem, porque não têm capacidade de adaptação”, descreve Álvaro Silva. O aquecimento do oceano tem um impacto “evidente” no sistema climático: um clima mais quente, com mais energia disponível, desencadeia “toda uma série de eventos que se tornam mais intensos e mais prováveis”.

Renováveis

O relatório analisa, pela primeira vez, a relação do clima com o aproveitamento das energias renováveis, sublinhando “os aspectos positivos que a sociedade pode procurar alcançar para contrariar um pouco este efeito das alterações climáticas”, como descreve Álvaro Silva.

As energias renováveis são uma fatia importante das soluções para a neutralidade carbónica, mas, tendo em conta a sua variabilidade, a monitorização e previsão da sua disponibilidade é essencial para que ganhem lugar seguro no mix energético europeu. Em 2022, a energia solar e eólica representaram 22,3% da electricidade produzida na União Europeia, ultrapassando pela primeira vez o gás (20%).

“Isto é um sinal claro de que temos de apostar nas energias renováveis, não só para reduzir a nossa dependência, mas também para aproveitar os recursos que, no caso da energia solar, são cada vez mais mais abundantes”, complementa Álvaro Silva. “Portugal tem, de facto, um enorme potencial para energia eólica offshore, mas também na energia solar que importa explorar”, completa.

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