Glaciares nos Alpes desaparecem a ritmo recorde após ondas de calor

Os glaciares dos Alpes podem estar a perder as maiores quantidades de cobertura em pelo menos 60 anos. O território foi assolado por duas grandes ondas de calor. “Estamos a ver no presente indicadores que os nossos modelos só previam para daqui a algumas décadas”, referem os cientistas.

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Se as emissões de gases com efeito de estufa continuarem a aumentar, prevê-se que os glaciares dos Alpes percam mais de 80% da sua cobertura até 2100 ARND WIEGMANN/Reuters

O glaciólogo suíço Andreas Linsbauer, de 45 anos, salta de uma fenda gelada para a outra sem grande dificuldade. Quase nem parece que, na sua mochila, ele carrega dez quilos de equipamentos de aço, dos quais precisa para mapear o declínio dos glaciares na Suíça.

Por norma, Linsbauer faz este trajecto, no glaciar Morteratsch, no fim de Setembro, quando o degelo de Verão nos Alpes chega ao fim. Mas este ano houve uma perda de gelo excepcionalmente elevada, daí o cientista ter feito questão de estar no terreno dois meses antes da data. E o seu trabalho não está a ser nada fácil: à medida que o gelo derrete, os postes de medição que ele usa para monitorizar mudanças na profundidade do glaciar correm o risco de se desalojar completamente.

Segundo dados a que a agência Reuters teve acesso exclusivo, os glaciares dos Alpes podem estar a perder as maiores quantidades de cobertura em pelo menos 60 anos (isto é, desde que há registos oficiais). A medição de quão um glaciar derreteu num determinado ano pode ser feita ao calcular a diferença entre a quantidade de neve que caiu no Inverno e a quantidade de gelo que derreteu no Verão.

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Glaciar Pers, na Suíça ARND WIEGMANN/Reuters

O último Inverno foi difícil para os Alpes, pois foi um Inverno ao longo do qual caiu relativamente pouca neve. E este Verão não tem começado da melhor forma: o território foi assolado por duas grandes ondas de calor, incluindo uma em Julho, que ficou marcada por temperaturas perto dos 30 graus Celsius em Zermatt, cidade montanhosa no Sul da Suíça.

Esta segunda-feira, o serviço meteorológico suíço MeteoSwiss deu conta de um momento histórico (pelos piores motivos). Balões meteorológicos lançados por cientistas em solo suíço ascenderam a uma altitude de 5184 metros antes de os termómetros baixarem para os zero graus Celsius, sendo encontrado o chamado ponto de congelamento, em que a água passa de estado líquido para sólido.

Até esta segunda-feira, o ponto de congelamento na atmosfera por cima da Suíça estava fixado nos 5117 metros. Foi ultrapassado um recorde que havia sido estabelecido há 27 anos. E o ponto de congelamento nesta altura do ano costuma rondar os 3000 a 3500 metros.

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IPCC sublinha que, devido ao impacto de emissões passadas, muitos glaciares desaparecerão mesmo que cortemos radicalmente com as emissões de gases com efeito de estufa ARND WIEGMANN/Reuters

A maioria dos glaciares montanhosos do mundo está a derreter devido às alterações climáticas, mas os glaciares que podem ser encontrados nos Alpes europeus são especialmente vulneráveis, pois são mais pequenos, com pouca cobertura de gelo. Por outro lado, as temperaturas nos Alpes estão a aquecer 0,3 graus Celsius por década — o que é cerca de duas vezes mais rápido do que a média global.

Se as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) continuarem a aumentar, prevê-se que os glaciares dos Alpes percam mais de 80% da sua cobertura actual até 2100. Num relatório de 2019, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) sublinha que, devido ao impacto provocado por emissões passadas, muitos glaciares desaparecerão mesmo que sejam tomadas acções drásticas relativamente às emissões de GEE.

Matthias Huss, do projecto Glacier Monitoring Switzerland, que disponibiliza dados e observações anuais sobre o estado dos glaciares suíços, refere que, caso surjam mais anos ambientalmente drásticos como 2022, os glaciares dos Alpes podem desaparecer mais cedo que o previsto. “Estamos a ver no presente indicadores que os nossos modelos só previam para daqui a algumas décadas”, afirma o especialista à Reuters. “Não esperava ver um ano tão extremo numa fase tão prematura do século XXI.”

​Caos generalizado

A Reuters ouviu glaciólogos em Áustria, França e Itália, que confirmaram que, nesses países, os glaciares também estão a caminhar rumo a perdas de cobertura históricas.

A queda de neve sazonal, além de repor o gelo perdido durante o Verão, protege os glaciares de níveis adicionais de derretimento. A neve fornece uma cobertura branca que é mais eficaz a reflectir a luz solar de volta para a atmosfera do que o gelo mais escuro, manchado por poeiras ou poluição.

Mas no glaciar Grand Etret, na zona Noroeste de Itália, acumularam-se apenas 1,3 metros de neve durante o Inverno passado. Isso corresponde a uma redução de aproximadamente dois metros face à média anual do século XXI para a região.

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Há na Suíça um glaciar que está a perder cerca de cinco centímetros de cobertura por dia ARND WIEGMANN/Reuters

As perdas de gelo alpino que já ocorreram este ano foram registadas antes do mês que, em termos de derretimento, tende a ser o mais significativo (esse mês é Agosto). “Não é difícil imaginar quais serão os resultados finais após o Verão... grandes perdas de cobertura dos glaciares nos Alpes italianos”, diz Marco Giardino, que é o vice-presidente do Comité Glaciológico Italiano.

Dados apresentados exclusivamente à Reuters mostram que o glaciar Morteratsch está a perder cerca de cinco centímetros de cobertura por dia — e já está num estado pior do que normalmente estaria no final de um Verão dito normal. O glaciar Silvretta, também na Suíça, também está a ter um ano historicamente mau. Já perdeu em cobertura mais um metro do que, até finais de Julho, perdera em 1947 — o pior ano desde que há registos.

Os cientistas dizem que os glaciares dos Himalaias também estão a caminhar rumo a um ano historicamente mau no que diz respeito à perda de gelo. Uma onda de calor que assolou o Norte da Índia entre Março e Maio — e ao longo da qual foram registadas temperaturas acima dos 48 graus Celsius — revelou-se particularmente danosa.

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Residentes suíços temem que o derretimento dos glaciares prejudique a sua economia ARND WIEGMANN/Reuters

O derretimento de glaciares está a colocar vidas em risco. No início deste mês, o colapso de um glaciar no Marmolada, maciço dos Alpes italianos, vitimou 11 pessoas. Dias depois, um glaciar em colapso nas montanhas Tian Shan, na zona Este do Quirguistão, desencadeou uma avalanche enorme, enviando gelo e rochas na direcção dos turistas que passavam.

Por cima da aldeia suíça de Saas Fee, um caminho que leva a uma cabana de montanha passa por um campo de neve no topo do glaciar Chessjen. Devido ao risco de queda de rochas, que o gelo já ajudou a conter, percorrer esse caminho “está muito perigoso agora”, comenta Dario Andenmatten, guardião dessa cabana.

Os residentes suíços temem que o derretimento dos glaciares prejudique a sua economia. Algumas estâncias de esqui da região dos Alpes, que dependem desses glaciares, estão agora a cobri-los com lençóis brancos para reflectir a luz solar e tentar reduzir o derretimento.

Os glaciares suíços aparecem em muitos contos de fadas nacionais e o glaciar Alestch é Património Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Perder os glaciares “significa perder a nossa herança nacional, nossa identidade”, diz à Reuters o caminhante Bernardin Chavaillaz. “É triste.”

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