O colapso da circulação do Atlântico é uma história que só agora começou

O consenso científico assegura que não há sinais de que a circulação do Atlântico vai entrar em colapso. Mas um artigo recente pôs o dedo na ferida sobre um tema ligado às alterações climáticas.

Foto
A circulação do Atlântico transporta calor para a Europa HENRIK EGEDE-LASSEN
Ouça este artigo
00:00
12:28

Os oceanos poderão ser um mundo longínquo para muitos habitantes nos continentes, mas o que se passa no seu interior tem uma influência definitiva na vida de todos. No final de Julho, um estudo publicado na revista Nature Communications e noticiado com algum alarme recordou esse facto. O artigo usou modelos matemáticos para estimar que, entre 2025 e 2095, num cenário em que as emissões de gases com efeito de estufa seguem a tendência actual, a circulação termoalina meridional do Atlântico (AMOC, sigla em inglês) irá atingir um ponto sem retrocesso, ou seja, entrará em colapso. Mas essa conclusão está longe de ser consensual.

A AMOC é um sistema de circulação que transporta superficialmente, ao longo do oceano Atlântico, águas aquecidas ao nível dos trópicos para o Norte do Atlântico que se afundam, mais frias e densas, já perto da região polar (já lá vamos). Esta massa de água é determinante para a Europa, já que lança calor e humidade para o continente, amenizando o clima. Basta comparar os Invernos gelados de Nova Iorque com o Inverno bastante mais quente de cidades costeiras que ficam a latitudes semelhantes, como Porto e Lisboa.

“Se essa circulação se reduzisse, em pouco tempo teríamos menos calor a ser transportado para as latitudes elevadas e o factor amenizador acabaria por desaparecer”, explica ao PÚBLICO Álvaro Peliz, investigador e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que trabalha na área da oceanografia física, estudando a dinâmica dos oceanos.

Europa mais fria, mas um planeta a aquecer

Um relatório do fim de 2022 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) sobre os pontos sem retrocesso associados à progressão das alterações climáticas ajuda a imaginar aquele cenário. À partida, o colapso da AMOC poderia provocar uma descida na temperatura média da Europa, entre os três e os oito graus Celsius.

Mas num contexto de alterações climáticas, imaginando-se uma temperatura média superficial da Terra 2,5 graus Celsius acima dos valores pré-industriais – há previsões de que já nos próximos anos a temperatura média poderá atingir mais 1,5 graus em relação ao passado pré-industrial –, o colapso da AMOC seria em parte mitigado pelo aquecimento global. Nesse caso, os cenários antevêem que a Europa já não arrefeceria tanto. No entanto, também iria perder precipitação, tornando-se muito mais seca, o que teria consequências na produção alimentar.

O encerramento da AMOC teria um profundo impacto na agricultura ao nível global”, lê-se no relatório da OCDE. Com um colapso daquela corrente somado ao aquecimento global, “mais de metade da terra apropriada para o crescimento de trigo e de milho é perdida”, segundo o documento. “A Europa seria especialmente afectada (…). Um colapso da AMOC iria aumentar a sazonalidade, reduzindo a produtividade agrícola, com Invernos mais frios e Verões mais secos”, aponta o documento, apresentando um cenário bastante difícil.

De qualquer forma, o consenso científico não antevê o colapso da AMOC, pelo menos para o século XXI. “É muito provável que a AMOC enfraqueça ao longo do século XXI para todos os cenários de emissões [de gases com efeito de estufa]”, adianta o relatório Alterações Climáticas 2021 — A Base da Ciência Física, que faz parte do sexto e mais recente ciclo de avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, sigla em inglês). Mas “há uma confiança média de que não vai haver um colapso abrupto antes de 2100”, prossegue o documento da reconhecida autoridade internacional que, desde 1990, tem analisado e compilado o conhecimento científico que vai sendo produzido na área climática para informar a governança mundial.

É no contexto daquela avaliação do IPCC e com base nos dados obtidos a partir da monitorização da AMOC que Álvaro Peliz relativiza a importância do artigo publicado na Nature Communications e desdramatiza os seus resultados. “É um artigo entre muitos artigos. Todos os meses, senão semanas, saem artigos sobre a AMOC. Aquele, porque se situa fora da expectativa, ganhou mais visibilidade. Mas não vale a pena estar a trazer um cenário catastrofista”, sublinha.

O coração do sistema climático

A AMOC faz parte do sistema de correntes oceânicas em todo o mundo que vai redistribuindo o calor que se acumula na região dos trópicos. No oceano Atlântico, à medida que a massa de água quente vai caminhando para norte, vai perdendo água que se evapora para a atmosfera, aumentando a concentração de sal das águas e, ao mesmo tempo, arrefecendo. Por outro lado, quando a corrente atinge a região polar, parte daquela água pode congelar devido às baixas temperaturas, deixando a restante mais salgada e ainda mais densa.

Aquela transição, de água mais quente e menos salgada para uma água mais fria e com mais sal, está na base da criação da água em profundidade do Atlântico Norte. Ou seja, nas regiões perto do pólo, como no mar de Lavrador, entre a Gronelândia e o Canadá, e ainda mais a norte, no mar rodeado pela Gronelândia, Islândia e Noruega, a água densa e fria afunda-se.

Essa água vai-se movendo na direcção inversa a grandes profundidades, pelo Atlântico, rumo à Antárctida, mas, sem a velocidade que a caracterizava durante a viagem superficial, ela avança muito mais lentamente. Um volume de água que se afunda no Norte do oceano Atlântico demora, em média, cerca de 1000 anos a percorrer o globo até chegar ao mesmo local, de acordo com a Agência Nacional do Oceano e da Atmosfera (NOAA, sigla em inglês), dos Estado Unidos. Ao todo, o volume de água movido equivale a 100 vezes o fluxo de água no rio Amazonas.

A partir dos registos paleoclimáticos, estima-se que a AMOC tem estado estável nos últimos 8000 anos, de acordo com o relatório do IPCC. Mas antes, durante o último período glaciar, aqueles registos mostram que houve vários colapsos entre há 71.000 e 12.000 anos.

“Quando houve condições que nós pensamos que foram de paragem total da AMOC, estávamos em períodos de clima glaciar, em situações muito frias, que não têm propriamente a ver com as condições que temos hoje”, explica ao PÚBLICO Fátima Abrantes, investigadora com uma vasta experiência na área da paleoceanografia, do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve e do Instituto Português do Mar e da Atmosfera.

Para Portugal, estas mudanças trouxeram diminuições de temperaturas que chegaram aos dez graus Celsius, adianta a investigadora. Mas o impacto iria muito além de Portugal e da Europa. “Muitas pessoas não têm noção, mas, em termos temporais além dos 30 anos, o oceano é quem regula o clima. Costumo dizer que o oceano é o coração do sistema climático, porque é o oceano que distribui calor por todo o planeta”, refere Fátima Abrantes.

O território desconhecido

Além do arrefecimento da Europa, estima-se que o colapso da AMOC iria provocar “uma deslocalização mais para sul da cintura de chuvas dos trópicos, enfraquecer o sistema de monções de África e da Ásia, e iria reforçar as monções do hemisfério Sul”, lê-se no relatório da OCDE.

No contexto actual, com as alterações climáticas, há um patamar acrescido de desconhecimento, já que os efeitos do aquecimento global terão uma influência em tudo o que ocorrer. Aliás, é o próprio fenómeno, provocado pela emissão de gases com efeito de estufa, que, paradoxalmente, põe em causa a estabilidade da corrente oceânica e o clima ameno europeu. É este risco que está na origem da investigação publicada na Nature Communications e também de outros artigos produzidos no passado.

Por um lado, o aquecimento acelerado do Árctico em relação às águas subtropicais diminui o gradiente térmico de sul para norte. Por outro, o mesmo calor tem acelerado o derretimento do gelo na Gronelândia, injectando quantidades de água doce no mar ao redor e diluindo a concentração de sal. Por fim, o aumento de pluviosidade naquela região poderá ter o mesmo efeito do derretimento dos gelos.

Os três fenómenos poderão diminuir a densidade da água em profundidade do Atlântico Norte. O risco é que essa diminuição de densidade desacelere a AMOC e, num prazo mais alargado, ponha em causa a corrente. “Uma análise recente, que sintetiza estudos observacionais, paleoclimáticos e baseados em modelos, dá a melhor estimativa para o colapso da AMOC quando ultrapassado o limiar de quatro graus Celsius (com um intervalo entre os 1,4 e os oito graus)”, lê-se no relatório da OCDE, que acrescenta também que a circulação da corrente está no seu ponto mais fraco nos últimos 1000 anos.

Foto
Dirk Moll/GettyImages

Preocupações futuras

Um dos problemas sobre a previsão do futuro daquela corrente é que os dados de monitorização da AMOC são recentes. Só em 2004 é que o sistema Rapid iniciou as leituras no Atlântico, da superfície até ao leito do oceano, ao longo de uma linha que vai de Marrocos até à Florida, nos Estados Unidos. Os instrumentos medem a temperatura, a salinidade e a velocidade das correntes. Em 2014, um segundo sistema de monitorização da AMOC chamado OSNAP iniciou trabalhos na região subpolar do Atlântico Norte, que complementa a informação dada pelo Rapid.

Nos quase 20 anos de monitorização do Rapid, o sistema detectou uma diminuição da força da corrente entre 2009 e 2011. Mas, nos anos seguintes, houve uma recuperação. Estas medições sugerem a existência de uma variabilidade da AMOC. “Mas a série temporal é demasiado curta para se obter conclusões fortes sobre as razões para isso”, lê-se no site do programa Rapid-AMOC.

“Já estamos a medir quase há 20 anos a AMOC e não temos nenhum indício de uma interrupção”, diz Álvaro Peliz. “Vemos oscilações, tivemos um decréscimo muito acentuado em 2010 que foi muito preocupante. Mas, desde então, recuperou...”, afirma o investigador.

Perante a limitação temporal das medições – a Organização Mundial de Meteorologia considera que 30 anos é o período temporal mínimo para se obter uma média de um determinado aspecto do sistema climático – os cientistas tentam investigar o comportamento passado, presente e futuro da AMOC através de outros dados que possam ser correlacionados com o comportamento daquele sistema. Foi isso que Peter Ditlevsen e Susanne Ditlevsen, dois irmãos e investigadores dinamarqueses da Universidade de Copenhaga, fizeram no novo artigo da Nature Communications.

Os cientistas utilizaram a temperatura superficial de uma área específica do Atlântico Norte, que é medida desde 1870, como uma impressão digital para o estado da AMOC. A partir daqui, usaram modelos matemáticos para estimar quando é que a AMOC atingiria um ponto de colapso. Essa estimativa produziu um intervalo entre 2025 e 2095.

Nas conclusões do artigo, os autores não conseguem especificar se esse colapso seria parcial ou total. Além disso, consideram que podem existir limitações nos seus cálculos, mas argumentam que isso não retira o valor do estudo.

“Estes resultados partem do pressuposto de que o modelo é aproximadamente correcto e, como é óbvio, não podemos excluir a possibilidade de que outros mecanismos estão em jogo, e por isso a incerteza é maior”, lê-se no artigo. “No entanto, reduzimos a análise para ter o mínimo de pressupostos e que eles sejam os mais sólidos possível, e dada a importância da AMOC para o sistema climático, não poderemos ignorar os indicadores claros de um colapso iminente.”

Mas muitos cientistas têm dúvidas acerca da correlação que é feita. “A validade de que a temperatura superficial do mar poder ser uma aproximação da força da AMOC é um tema de debate científico, porque é baseada em comportamentos de modelo e não está provada quando se usa dados do mundo real [obtidos por monitorização]”, diz Penny Holliday, investigadora principal do programa OSNAP e responsável pelo departamento de Física Marinha e Circulação Oceânica do Centro Nacional de Oceanografia do Reino Unido.

“Há provas sólidas de que essa relação clara não existe, especialmente em escalas de tempo menores do que 30 anos”, acrescenta a investigadora, que deu estas declarações ao Centro de Media de Ciência, do Reino Unido, quando o artigo foi publicado.

Ainda assim, Penny Holliday concorda com a urgência que transparece no artigo, em que se sublinha a importância de monitorizar a corrente e os sinais de alerta precoce de um eventual colapso. Apesar de o IPCC não prever essa possibilidade, houve alturas em que se correram modelos do clima e a AMOC entrou em colapso, recorda a investigadora. Por outro lado, o próprio IPCC não exclui essa hipótese “se existir um influxo inesperado de água derretida proveniente das camadas de gelo da Gronelândia”, lê-se no relatório de 2021.

É com estas probabilidades, mesmo que diminutas, que os cientistas têm de fazer contas, principalmente num fenómeno com tamanha gravidade. “A possibilidade não pode ser completamente excluída”, admite Penny Holliday. Os autores do artigo “descrevem um potencial colapso da AMOC dentro de alguns anos como sendo ‘preocupante’ e os indícios como algo que não deve ser ignorado. É difícil discordar sobre isso”.

Há ainda mais uma questão. Peter Ditlevsen não esquece a origem do problema, que abrange toda a Terra, não apenas a corrente do Atlântico. “O nosso resultado sublinha a importância de se reduzir as emissões de gases com efeito de estufa o mais rapidamente possível”, afirma o investigador, num comunicado da Universidade de Copenhaga. E também neste caso, independentemente do futuro da AMOC, não há como discordar.

Sugerir correcção
Ler 9 comentários