Clima: 2023 deixa “um rasto de devastação e desespero”

Do ano mais quente de sempre à subida recorde do nível médio do mar, 2023 acumulou galardões indesejados. A Organização Meteorológica Mundial fala numa “cacofonia ensurdecedora de recordes quebrados”.

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Vista aérea de Lahaina, no Havai, dias após o incêndio devastador de Agosto de 2023 Robert Gauthier/Los Angeles Times
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O ano de 2023 foi ímpar do ponto de vista climático – e pelas piores razões. O relatório provisório da Organização Meteorológica Mundial (OMM), divulgado nesta quarta-feira, confirma que 2023 será o ano mais quente desde que há registos. Ao longo dos últimos 11 meses, o planeta testemunhou temperaturas recordes da superfície do mar e uma diminuição sem precedentes do gelo marinho na Antárctida.

“Os níveis de gases com efeito de estufa constituem um recorde. As temperaturas globais também. A subida do nível do mar foi recorde. O gelo marinho da Antárctida está num nível recorde. É uma cacofonia ensurdecedora de recordes quebrados”, afirma Petteri Taalas, o secretário-geral da OMM, citado numa nota de imprensa que sublinha o “rasto de devastação e desespero” provocado pelos fenómenos de 2023​.

No que toca à temperatura média do planeta, os dados compilados pela organização até ao final de Outubro mostram que 2023 esteve cerca de 1,40 graus Celsius mais quente, em comparação ao período pré-industrial (ou seja, de 1850 a 1900).

Contudo, se os cálculos só consideram os dados de Janeiro a Outubro, como podemos ter certeza de que 2023 será, de facto, o ano mais escaldante de sempre? O relatório esclarece que é tão significativa a diferença entre 2023 e os dois anos classificados como os mais quentes até agora – 2016 e 2020 – que “é muito pouco provável” que Novembro e Dezembro interfiram com esta previsão da OMM.

“Estes números são mais do que meras estatísticas. Arriscamo-nos a perder a corrida para salvar os nossos glaciares e controlar a subida do nível do mar. Não podemos voltar ao clima do século XX, mas temos de agir agora para limitar os riscos de um clima cada vez mais inóspito neste e nos próximos séculos”, afirma Petteri Taalas.

Os últimos nove anos, de 2015 a 2023, também foram os mais quentes já registados. O padrão climático El Niño, que chegou durante a Primavera de 2023 no hemisfério Norte e se desenvolveu rapidamente durante o Verão, promete ainda mais calor para 2024. Isto porque, como refere a nota da OMM, o El Niño normalmente tem maior influência nas temperaturas globais após atingir o ápice.

“Este ano vimos comunidades em todo o mundo atingidas por incêndios, inundações e temperaturas abrasadoras. O calor global recorde deveria causar arrepios na espinha dos líderes mundiais”, refere o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, no mesmo documento, divulgado no mesmo dia em que arranca a cimeira do clima COP28.

O Azul resume abaixo a “cacofonia” de recordes quebrados em 2023.

Subida do nível do mar

Em 2023, o nível médio global do mar atingiu um máximo histórico da série de registos de satélite, uma observação que é feita há 20 anos. Esta subida ocorre em simultâneo com o aquecimento e a acidificação do oceano, a destruição dos glaciares e das plataformas de gelo. Estas mudanças não só ameaçam países insulares e comunidades que vivem ao longo da costa, mas também a saúde (ou mesmo a existência) de certos ecossistemas marinhos.

A taxa de subida do nível do mar entre 2013 e 2022 é mais do dobro da taxa da primeira década do registo de satélite (ou seja, o período entre 1993 e 2002).

Gases com efeito de estufa

As concentrações observadas de dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O) – os três principais gases com efeito de estufa – alcançaram níveis recorde em 2022. Este é o último ano para o qual existe informação disponível já compilada e tratada. Pela primeira vez em 2022, a concentração média global de CO2 foi 50% superior à que existia antes da Revolução Industrial.

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Central eléctrica a carvão de Belchatow, na Polónia, uma fonte de gases com efeito de estufa Pater Andrews/Reuters

Se mantivermos o ritmo actual de emissões de gases com efeito de estufa, estaremos a limitar o aquecimento global a 2,9 graus Celsius até 2100 – ou seja, muito acima dos 1,5 graus Celsius preconizados pelo Acordo de Paris, avisa o relatório Emissions Gap Report 2023, divulgado em Novembro pela agência das Nações Unidas para o ambiente (UNEP, na sigla em inglês).

Esta tendência negativa mantém-se este ano se olharmos para os dados recolhidos em estações específicas, em diferentes geografias, e disponibilizados em tempo real: a tríade de poluentes parece manter a curva ascendente em 2023.

A redução das emissões de metano é, aliás, um dos focos da Cimeira do Clima (COP28), que começou esta quinta-feira no Dubai. Mais de 150 países comprometeram-se a reduzir as emissões de metano a partir de 2021, mas grande parte das promessas não passou de uma mera declaração de intenções.

Temperaturas planetárias

A temperatura média global próxima à superfície em 2023 (até Outubro) foi cerca de 1,40 graus Celsius acima da média do período de 1850 a 1900. Com base nesses dados, é quase garantido que 2023 será o ano mais quente de uma colecção de registos alimentada ao longo de 174 anos. Este ano será provavelmente mais quente do que o de 2016 (1,29 graus Celsius acima da linha de referência pré-industrial) e o de 2020 (1,27 graus Celsius)

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O ano de 2023 severá ser o mais quente desde que há registos DR

Registaram-se ainda temperaturas globais mensais recordes tanto na terra como no mar: de Abril a Outubro no oceano e de Julho a Outubro na porção terrestre.

“Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro de 2023 superaram, cada um, o recorde anterior para o respectivo mês por uma ampla margem em todos os conjuntos de dados utilizados pela OMM para o relatório climático. Julho é normalmente o mês mais quente do ano em todo o mundo e, portanto, Julho de 2023 tornou-se o mês mais quente de todos os tempos”, refere a nota de imprensa.

Criosfera

A extensão do gelo marinho na Antárctida atingiu, em Fevereiro de 2023, um mínimo histórico absoluto para a era dos satélites (ou seja, de 1979 até agora). É o segundo ano consecutivo que a massa gelada na Antárctida fica abaixo dos dois milhões de quilómetros quadrados.

O vasto manto branco da Antárctida ajuda a regular a temperatura do planeta, uma vez que a superfície clara reflecte a energia do Sol, devolvendo-a à atmosfera. As diferentes massas de gelo também arrefecem as águas circundantes.

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O gelo marinho está a diminuir ano após ano ALISTER DOYLE/REUTERS (arquiv)

“Está tão longe de tudo o que vimos que é quase alucinante”, disse à BBC em Setembro um especialista na monitorização do gelo marinho na Antárctida.

A extensão do gelo marinho no Árctico manteve-se também muito abaixo do normal. As extensões máximas e mínimas anuais foram a quinta e a sexta mais baixas de que há registo, respectivamente.

Fenómenos extremos

Este ano, todos os continentes habitados testemunharam algum tipo de fenómeno climático ou meteorológico extremo. Recorde-se que as variáveis meteorológicas dizem respeito ao estado imediato da atmosfera numa geografia específica, indicando valores associados à temperatura, precipitação ou humidade, por exemplo. Já o clima consiste aos padrões de tempo mais comuns ao longo de vários anos numa determinada região.

No ano de 2023, tivemos ciclones tropicais, ondas de calor, episódios de seca hidrológica e incêndios florestais. Cheias associadas à precipitação extrema provocada pela tempestade Daniel afectaram em Setembro a Grécia, a Bulgária, a Turquia e a Líbia (o país mais afectado).

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Rapaz recolhe destroços em resultado da passagem do ciclone Freddy perto de Quelimane, em Moçambique ANDRÉ CATUEIRA/LUSA

O ciclone tropical Freddy, um dos mais duradouros de que há notícia, causou enormes perdas em Madagáscar, Moçambique e no Malawi em Fevereiro e Março.

Como já dissemos, 2023 tem sido um ano escaldante. O sul da Europa e o norte de África, especialmente na segunda quinzena de Julho, foram assolados por um calor extremo. Os termómetros em Itália chegaram aos 48,2 graus Celsius, por exemplo. O calor foi tanto que o Governo italiano aprovou uma medida para ajudar, com 10 milhões de euros, os sectores agrícola e da construção civil a proteger os trabalhadores. O objectivo era permitir que a actividade laboral ficasse suspensa nos dias mais críticos, mantendo os trabalhadores em casa.

Foram registados recordes de temperatura na cidade tunisina de Tunes (49,0 graus Celsius), na cidade marroquina de Agadir (50,4) e na cidade argelina de Argel (49,2).

O calor extremo tem impactos na saúde humana. O mais recente relatório Lancet Countdown sobre clima e saúde estima não só que as mortes relacionadas com o calor extremo podem subir 370%, mas também que 525 milhões de pessoas deverão enfrentar insegurança alimentar até 2050.

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Ondas de calor associadas à seca prolongada aumentam risco de incêndios florestais Tiago Lopes (arquivo)

A época de incêndios florestais no Canadá foi muito superior a qualquer outra registada anteriormente. O comunicado da OMM refere que a área total ardida no país até 15 de Outubro era de 18,5 milhões de hectares, mais de seis vezes a média da última década (2013-2022).

O Havai, por sua vez, foi palco do incêndio florestal mais trágico dos Estados Unidos nos últimos 100 anos. Foram registadas pelo menos 99 mortes.

“As condições meteorológicas extremas estão a destruir vidas e meios de subsistência diariamente – sublinhando a necessidade imperativa de garantir que todos estejam protegidos por serviços de alerta precoce”, afirma Petteri Taalas.

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