Terra pode ficar até 3 graus mais quente em 2100 no ritmo actual de emissões

Aquecimento global perto dos 3 graus Celsius se os países continuarem, como estão agora, a reduzir emissões a passo de caracol, sugere relatório das Nações Unidas divulgado esta segunda-feira.

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O relatório das Nações Unidas mostra o fosso que separa as promessas climáticas dos resultados que os países mostraram até agora Markus Spiske/Pexels
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Estamos no caminho certo, mas avançamos em ritmo de caracol. Esta é uma das principais mensagens do relatório Emissions Gap Report 2023, divulgado nesta segunda-feira pela agência das Nações Unidas para o ambiente (UNEP, na sigla em inglês). Se mantivermos a trajectória actual em termos de emissões de gases com efeito de estufa, estaremos a limitar o aquecimento global a 2,9 graus Celsius até 2100 – ou seja, muito acima dos 1,5 graus Celsius preconizados pelo Acordo de Paris.

“Sabemos que ainda é possível tornar o limite de 1,5 graus Celsius uma realidade. Exige apenas que arranquemos a raiz envenenada da crise climática: os combustíveis fósseis. E exige uma transição justa e equitativa para as energias renováveis”, afirmou António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, num comentário ao relatório, citado numa nota de imprensa da UNEP.

“Caminhamos na direcção certa, mas demasiado devagar para lidar de forma efectiva com a crise climática actual”, afirma ao PÚBLICO a cientista portuguesa Joana Portugal Pereira, co-autora do relatório da UNEP que avalia anualmente o desempenho dos países que têm como objectivo comum lutar contra a crise climática. Para isso, é crucial limitar o aumento da temperatura global bem abaixo dos 2 graus Celsius, preferencialmente à volta dos 1,5 graus Celsius, em relação aos níveis pré-industriais.

O relatório mostra o fosso que separa as promessas dos resultados. Joana Portugal Pereira sublinha que as estratégias anunciadas pelos mais de 160 países “não são credíveis”, quer a curto ou a longo prazo. A cientista portuguesa refere que, entre as mais de 80 estratégias de neutralidade climática anunciadas pelas nações, apenas três apresentam evidências concretas e planos de acção para tirar as palavras do papel.

A publicação Emissions Gap Report examina, há 14 anos, o percurso que fizemos até agora e o caminho que ainda temos de trilhar (e a sua velocidade) para garantirmos às gerações futuras um planeta minimamente habitável. Todos os anos, repete-se o mesmo aviso: é preciso pisar no acelerador. Inger Andersen, directora da UNEP, disse-o em 2022. Neste ano, reitera o alerta, para que nenhum país diga mais tarde que não sabia.

“Nós vamos estar a dizer a mesma coisa no ano que vem – e no seguinte também, assim como no ano a seguir, como um disco riscado”, escreve no prefácio Inger Andersen, para quem “a humanidade tem quebrado os recordes errados quando o assunto é alterações climáticas”. As emissões de gases com efeito de estufa atingiram um novo recorde em 2022, por exemplo. E é quase certo que 2023 termine com o triste galardão do ano mais quente desde que há registos.

Em vez de estarmos a descer, estamos a subir na curva de gases com efeito de estufa. Os países aumentaram as emissões 1,2% entre 2021 e 2022, quando precisam de reduzir entre 4 a 6% para limitar a subida da temperatura média entre 1,5 e 2 graus Celsius. Quer isto dizer que é já impossível cumprir os objectivos do Acordo de Paris? Ainda há tempo, diz Joana Portugal Pereira.

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O relatório da UNEP é publicado menos de duas semanas antes da Cimeira do Clima (COP28), que arranca no dia 30 de Novembro no Dubai AMR ALFIKY/Reuters

“Mais uma vez, mostramos que ainda é tecnicamente possível conter o aquecimento global em níveis considerados seguros pela ciência. Para tal, é necessário reduzir as emissões em 40% até 2030, face aos níveis de 2019, para atingirmos uma neutralidade carbónica até ao meio deste século”, refere a cientista portuguesa, que é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil, e investigadora do Imperial College de Londres, no Reino Unido.

De olho na COP28

Publicado menos de duas semanas antes da Cimeira do Clima (COP28) – que arranca no dia 30, no Dubai –, o documento agora divulgado pela UNEP também faz referência ao primeiro Global Stocktake (um balanço global, em português). Trata-se de um procedimento, dividido em três etapas, que faz o ponto da situação das emissões planetárias.

O Global Stocktake vai influenciar a próxima leva das chamadas “contribuições nacionalmente determinadas” (NDC, na sigla inglesa). As novas NDC consistem no compromisso voluntário de cada um dos 166 países envolvidos para reduzir a emissão de gases até 2035. A COP28 será palco da terceira e última fase do Global Stocktake, e daí a importância que tanto negociadores como especialistas climáticos atribuem ao processo.

“Agora, neste calendário da COP28, teremos a resposta política a um relatório técnico que foi divulgado em Setembro. Os resultados não são nada bons. Nenhuma das partes está realmente a cumprir o que foi definido no Acordo de Paris em 2015”, lamenta Joana Portugal Pereira.

O falhanço nas promessas climáticas toca a todos, incluindo a União Europeia, que tem um historial simpático de acção climática: já existem pelo menos dois estudos que sugerem que os objectivos da estratégia climática Fit for 55 não vão ser atingidos com a trajectória actual do bloco europeu.

“Uma auditoria externa também mostrou que Bruxelas não está a canalizar os fundos necessários para implementar a estratégia”, acrescenta a co-autora dos capítulos quatro e sete do relatório da UNEP.

É preciso, portanto, não só velocidade, mas também “ambição”. “O mundo precisa de sair do buraco da falta de ambição e acção, e começar a estabelecer novos recordes, desta vez de redução de emissões, de transição verde e justa e ainda de financiamento climático – e começar já”, encoraja a directora Inger Andersen no documento.

Carbono: melhor reduzir do que capturar

O relatório também avalia estratégias de captura de carbono, tanto tecnológicas como biológicas. “Sabemos que, para podermos fechar bem as continhas do orçamento de carbono, e para nos mantermos bem abaixo dos 2 graus Celsius, não conseguimos atingir os níveis desejados com os números actuais. Por isso, precisamos começar a avaliar de forma mais séria estratégias que no relatório são descritas como inovadoras em termos de captura química”, contextualiza Joana Portugal Pereira.

Os modelos usados para avaliar os custos e os riscos das diferentes estratégias, todas centradas na captura de carbono, mostram que é melhor prevenir do que remediar. Por outras palavras, vale mais evitar emissões hoje do que remover carbono da atmosfera amanhã.

“Há uma série de riscos. Não é a opção de menor custo de lidarmos com as emissões. São tecnologias em escala piloto, desenvolvidas em meia dúzia de países do hemisfério norte, com capacidade de capturar milhões de toneladas. Mas aqui estamos a falar de uma outra escala, que é de mil milhões de toneladas. Trata-se de uma ordem de grandeza diferente. Há também uma série de riscos acrescidos que não conhecemos. Então, sem dúvida, é melhor prevenir do que remediar”, refere Joana Portugal Pereira.

A associação ambientalista Zero tem uma visão semelhante, preferindo a redução de emissões à remoção. “As emissões e remoções de dióxido de carbono associadas ao uso do solo e floresta continuam a apresentar as maiores incertezas em termos de quantidades e tendências. Neste quadro, a remoção/sequestro de carbono levanta sérias dúvidas sobre a sua viabilidade e eficácia”, refere a Zero, num comunicado divulgado nesta segunda-feira em reacção ao relatório da UNEP.

A Zero entende que os novos métodos de captura de carbono da atmosfera “encontram-se geralmente numa fase inicial de desenvolvimento”, estando “associados a diferentes tipos de riscos, incluindo em termos técnicos, económicos e políticos, para uma implantação em grande escala”. Considerando que o planeta está em ritmo de contra-relógio, a associação considera que a aposta deve ser numa redução drástica e global de emissões.

Notícia actualizada às 18h23: foi incluída citação de António Guterres.

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