Johnny Depp: no Reino Unido, um agressor; nos EUA, uma vítima

Espanta-me esta quase beatificação do ator, que, entre outros comportamentos altamente censuráveis, em SMS enviados a um amigo fantasiava com a ideia de matar a companheira por afogamento, pegar-lhe fogo e “f**** o seu cadáver queimado”. Just boys being boys, right?

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Reuters/POOL

Algumas notas sobre o desfecho do caso Johnny Depp x Amber Heard:

1. Comecemos pelo veredicto: Depp (através do seu advogado) e Heard foram ambos condenados pelo crime de difamação. Ela terá de indemnizá-lo em 10,35 milhões de dólares; ele terá de compensá-la em dois milhões.

2. É possível que uma pessoa seja ao mesmo tempo vítima e agressor. Parece evidente que na relação turbulenta do casal não havia inocentes.

3. Espanta-me a quase beatificação de Depp, que, entre outros comportamentos altamente censuráveis, em SMS enviados a um amigo fantasiava com a ideia de matar a companheira por afogamento, pegar-lhe fogo e “f**** o seu cadáver queimado”. Just boys being boys, right?

4. Por muito que os fãs do ator cantem vitória, é importante não esquecer que, em 2020, um tribunal britânico considerou que a caracterização de Depp como um “homem que batia na mulher” era “substancialmente verdadeira”, dando como provado que abusou fisicamente de Heard em pelo menos 12 ocasiões. O ator tentou reverter a situação, mas o Tribunal de Recurso de Londres recusou o pedido de rever o caso, considerando que não tinha existido erro que o justificasse.

5. É inadmissível que um julgamento onde se apresenta uma (alegada) vítima de violência doméstica seja transmitido para todo o mundo – algo extremamente raro nestes casos – e que a (alegada) vítima seja obrigada a detalhar os horrores que terá sofrido sem que se proteja a sua dignidade.

6. É também absolutamente nojenta a “orgia de misoginia” (como escreveu Moira Donegan no The Guardian) que o caso desencadeou desde o primeiro minuto. Depp prometeu que Amber Heard seria humilhada à escala global e cumpriu: do Twitter ao Tik Tok, a avalanche de ódio em relação à atriz foi imparável.

7. Custa-me ver mulheres regozijaram-se com a humilhação de Heard, porque a mensagem que se passa às vítimas de violência doméstica é clara e trágica: fala e serás humilhada. A atriz já o tinha lamentado no artigo de opinião que esteve na base da acusação e, pelo menos aí, não mentiu.

8. Independentemente de quem tenha razão nesta disputa, dificilmente se encontrará um melhor case study de como se opera a descredibilização das vítimas de violência doméstica. A estratégia é conhecida como DARVO (Deny, Attack, Reverse Victim and Offender): negar, atacar e inverter vítima e agressor. Não convenceu o juiz britânico, mas funcionou na perfeição para os jurados norte-americanos.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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