Maria José Morgado: “Cultura de impunidade, nepotismo e amiguismo tem feito de Portugal um país pobre e atrasado”

A magistrada jubilada Maria Jose Morgado denuncia a “morosidade mórbida” na Justiça e aponta o dedo aos problemas que o país enfrenta

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Maria José Morgado jubilou-se em 2018

Jubilou-se da procuradoria-distrital de Lisboa em 2018. Hoje, aos 70 anos, Maria José Morgado ainda tem saudades dos tribunais e continua atenta ao que se passa no sector da justiça. Em entrevista ao PÚBLICO e Renascença, que pode ouvir esta quinta-feira às 23 horas, deixa várias críticas, ao poder político e ao mundo do futebol.

Nos últimos anos, temos tido uma série de casos de corrupção a envolver a classe política, a banca, o mundo empresarial e o futebol. A percepção que fica é que a corrupção é um fenómeno transversal e que tem crescido muito. É essa a convicção que tem?
A desmultiplicação de casos só vem destapar realidades subterrâneas que já existiam há muitos anos. A corrupção, o crime económico, branqueamento de capitais têm efeito altamente corrosivo na sociedade, provocam desigualdade, pobreza, instabilidade política. Segundo um relatório dos Verdes do PE, estima-se que a corrupção em Portugal seja de 18 mil milhões por ano.

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Maria José Morgado reconhece que há uma "morosidade mórbida" na justiça em Portugal Nuno Ferreira Santos

Acha fiáveis essas contas?
São especulativas. Em primeiro lugar, há cifras negras. Depois, não há relatórios oficiais sobre os dados da corrupção nem sobre as consequências a nível de cobrança de impostos, etc. A maior fatia da corrupção é um prejuízo invisível que tem que ver com as consequências de desigualdade e de pobreza.

Quando diz que são casos antigos destapados agora...
Sabemos pelas datas, não é? Até os processos são um bocadinho anteriores ao conhecimento por parte da comunicação social. A consumação é antiga. Será que isso revela que todos estes casos não representam um falhanço completo, a falência completa do sistema de escrutínio e fiscalização do sector público, da actividade política, de prevenir em vez de punir? Esse é um debate que deveríamos fazer.

Está a incluir aí o sistema de justiça?
Sim, também. Aliás, agora há um mecanismo de natureza eminentemente preventiva que é a obrigatoriedade de declaração de rendimentos e interesses a cada cinco anos por parte dos magistrados. É um avanço importante.

A quem é que assaca essas falhas no sistema de justiça?
Temos um sistema político muito indiferente ao escrutínio e à efectiva prestação de contas públicas.

Porquê?
É uma cultura de impunidade que existe há muitos anos, de nepotismo, amiguismo e que tem feito de Portugal um país pobre e atrasado, dominado por fenómenos de corrupção e fenómenos próximos da corrupção. A corrupção tem laços com outra criminalidade, é sempre instrumental. Em termos de legislação, tem sido feita uma legislação transbordante que em nada tem contribuído para a eficácia. Bem pelo contrário, tem contribuído para um hipergarantismo que conduz ao atraso, à morosidade mórbida dos processos, nomeadamente à dificuldade de recolha de prova e produção de prova em julgamento. Os próprios governos nunca estabeleceram um organismo com efectivos poderes de prevenção. Foi agora criado, com a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, o mecanismo nacional anticorrupção, que entrará em vigor em Maio. Segundo o decreto-lei que li, será uma coisa mastodôntica, ultraburocrática, um carro com rodas quadradas que visa substituir o CPCC (Conselho para a Prevenção e Combate à Corrupção) e que comete os mesmos erros. Tem no seu corpo a representação de todos os inspectores-gerais de todos os ministérios, o que conduz a uma governamentalização e dificuldade de funcionamento enorme.

Falta de independência?
Governamentalização e não só. A prevenção precisaria de um sistema ágil e eficaz e este parece-me ainda mais pesado do que o ordenamento jurídico repressivo, porque se traduz em aplicação de contra-ordenações relativamente ao regime geral de prevenção de corrupção, e a violação desse regime geral tem que ver com a violação dos códigos deontológicos, de conflitos de interesses, mas tudo isto se passa no sector administrativo. Não abarca o sector político.

Não abarca as contas dos partidos, nem as autarquias...
Nem os magistrados...

A criminalização da ocultação indevida de vantagem dos políticos e altos cargos recentemente aprovada não vai aumentar a transparência da vida pública?​
Não vou ser ingrata, mas não basta essa legislação para haver transparência. É preciso uma efectiva aplicação, e se houver património oculto, essa legislação não terá eficácia, não há recolha prévia de dados. Precisamos de recolha e análise prévia de dados.

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A magistrada jubilada critica o recente pacote anti-corrupção aprovado no Parlamento Nuno Ferreira Santos

Que avaliação faz do pacote anticorrupção que foi aprovado?
Muita parra e pouca uva. Em termos teóricos, tem lá a ortodoxia da transparência e integridade. Em termos práticos, os avanços são muito débeis. Só aplica a dispensa de pena, por exemplo, para infracções menos graves. Há um alargamento da suspensão provisória da pena para crimes mais graves, o que é bom, em termos de compensação legal de denunciantes, não há nada de relevante. Faltam as sentenças negociadas que são uma tendência irreversível em toda a Europa e uma maneira de dar celeridade aos julgamentos de criminalidade altamente organizada. Queremos sempre sol na eira e chuva no nabal. Quando não temos sentenças negociadas, dizemos que há morosidade, quando se quer esses mecanismos ágeis, toda a gente protesta.

Foram feitas também alterações para limitar o número de megaprocessos, mas dessa decisão de separar os casos haverá sempre recurso.
É mais uma confusão. Limita as conexões aos prazos de duração da instrução e do julgamento e prevê a cessação da conexão quando esteja em causa a intenção punitiva pelo Estado. Temos de ter investigações com método, plano, delimitação de objecto e visando um julgamento mais fácil. Estamos perante um crime específico em que é raro que se prove por prova pessoal, mas por meios de obtenção de prova específicos como intersecção telefónica, prova digital, prova bancária e financeira, agente encoberto. São processos que vivem de uma produção de prova muito árdua e que têm julgamentos muito difíceis que exigem assessorias financeiras e informáticas que não existem. E até exigem metodologia de digitalização de prova em julgamento que estaria ao alcance de aplicação e que nunca avançou não sei porquê. Há um programa pronto para ser aplicado.

Mas é aplicado em alguns processos.
Em poucos. É raro. Porque para ser aplicado tem de haver digitalização da prova desde o primeiro acto de recolha de prova. Para isso acontecer, tem de haver uma equipa muito preparada.

A falta de meios humanos e técnicos de que tanto se queixa o Ministério Público (MP). Acha que o facto de os sucessivos governos não dotarem o MP dos meios necessários é propositado?
É mais confuso ainda do que isso. Estamos perante um puzzle muito corporativista e dominado pela área política. A gestão dos recursos na justiça é feita de forma multifacetada e não por quem a aplica. Se uma equipa tiver uma investigação com necessidade de fazer buscas, prevê-se que sejam feitas em meio informático porque a maior parte da prova está contida em computadores. Para isso, é necessário discos duros para fazer a gravação dos conteúdos informáticos. O MP, por exemplo, não tem dinheiro para comprar esses discos duros. Na planificação dessas buscas com grande antecedência terá de se pedir discos rígidos à DGAJ (Direcção-Geral da Administração da Justiça), o que significa que há um terceiro fora da investigação criminal que pode supor que aqui vai acontecer qualquer coisa.

Mas há falta de dinheiro.
Isso é crónico. O poder político é sempre muito forreta com a justiça. Deve achar que é um desperdício gastar fundos com a justiça.

Como encara os mais recentes escândalos na justiça: prescrições, cauções elevadíssimas, a fuga de João Rendeiro?
Não posso comentar casos concretos, mas os processos são isolados entre si. Devemos aproveitar para reflectir sobre o que eles significam. Em relação a esse caso da caução elevada e prisão preventiva, posso dizer que conheço os procuradores, trabalhei com eles e são muito cuidadosos, nada aventureiros e muito exigentes em termos de fundamentação de facto e de direito.

No caso das parcerias público-privadas (PPP), a acusação só foi conhecida 11 anos depois do início das investigações. No processo EDP, o inquérito leva dez anos sem acusação. Isto é aceitável? Não devia a Procuradoria-Geral da República (PGR) prestar contas à sociedade?
Temos duas coisas. Uma é a demora nesses processos que são muito técnicos. Sobre a outra coisa, sempre fui defensora de que o MP devia prestar contas públicas de forma objectiva sem se pronunciar sobre a questão de mérito do caso, mas sobre a tramitação objectiva dos processos. Está, aliás, previsto no Código do Processo Penal quando há alarme social. É possível falar para repor a estabilidade e o esclarecimento público. Em nome dessa necessidade, os magistrados poderiam, de forma sucinta e objectiva, explicar. Ganharíamos com isso. Evitaria especulações e deturpações.

A foto de João Rendeiro quando foi capturado causou indignação. A si também?
Sim. É proibido submeter os arguidos a tratamento degradante e foi isso que aconteceu com a divulgação da fotografia.

Mas é normal fazer-se uma fotografia na altura da detenção?
Não sei. Não vou pronunciar-me. Sei que a comunicação social não devia ter feito essa divulgação.

No despacho final das PPP, o MP diz que houve crimes que prescreveram porque não houve tempo para investigar. Isto é normal?
Não vou falar no caso concreto, mas temos de pensar na questão de fundo: quais eram os factos? Não eram factos comuns. Não era a investigação de um assalto ou homicídio, não havia confissões, sangue na faca, prova pessoal. É um processo de elevado teor técnico, a exigir equipas multidisciplinares, muitos recursos técnicos e, porventura, não terá sido possível providenciar isso em tempo útil.

Os portugueses devem conformar-se com este tipo de situações?
Não, devem reflectir sobre estes acontecimentos e exigir que não voltem a acontecer. Não devemos ser fatalistas e ficar parados a um canto a chorar. Devemos pensar, analisar e compreender as razões. Estamos a falar de fenómenos altamente opacos e com cobertura legal aparente. No sector empresarial estatal, temos uma realidade vestida por contratos legais e tudo isso deve ser desmontado porque por detrás da legalidade existem as práticas desviantes. Não estamos a falar de coisas normais, mas de uma realidade ultra-opaca e ultra-invisível. E quando o sistema legal não tem nenhuma compensação para quem colabore na descoberta da verdade, ainda mais difícil se torna a detecção desses factos.

A legislação de protecção do denunciante que foi publicada esta semana não vai suficientemente longe?
A legislação de protecção do denunciante tem que ver com a protecção dos interesses financeiros da UE. É uma transposição de uma directiva de 2019. E não se vai muito mais longe para além daqueles aspectos de dispensa de pena e de possibilidade de suspensão provisória do processo para crimes com pena superior a cinco anos.

Isto leva-nos ao caso de Rui Pinto, protecção de denunciantes e casos de corrupção no futebol, um tema que lhe é muito caro. Lembro-me do caso Apito Dourado, que acompanhou.
Em 2002, dei uma entrevista à Pública em que falava do futebol como um mundo de dinheiros sujos com promiscuidades políticas que não se sabia onde começavam e acabavam. A multiplicação de escândalos no futebol é o destapar de uma realidade subterrânea e económica que não é regulada, que é avessa ao escrutínio e que não paga todos os impostos devidos e faz por não pagar. Tem um padrão de opacidade máxima com transferências offshore.

E que se alarga internacionalmente.
Tem dimensão transnacional. A FIFA já foi palco de muitos escândalos. Miguel Poiares Maduro saiu da FIFA fazendo denúncia da vulnerabilidade do organismo a fenómenos dessa natureza. A FIFA é um cartel político. O mundo do futebol é um mundo de impunidade. O futebol-negócio, transferências, merchandising, direitos de transmissão constituem, a nível mundial, 2% do PIB mundial. São entidades poderosas que não são fiscalizadas.

A colaboração de denunciantes como Rui Pinto é decisiva?
Claro que é decisivo. Se é uma realidade sem uma vítima directa, não há queixa, há pactos de silêncio porque a corrupção beneficia ambas as partes, se há essa opacidade, sofisticação, uso de tecnologias de informação, uso intensivo de offshores, e se não temos alguém dentro que denuncie o que se passam temos muita dificuldade em recolher prova.

Mas vale tudo? Se essa colaboração se basear em prática de crimes...
Não se baseia nada em prática de crimes, baseia-se na denúncia. O direito é muito rico e resolve sempre as situações a bem da justiça.

Estamos a fechar um ciclo político e pode vir aí um bloco central de interesses. Isso é um cenário de maior risco para a corrupção no Estado?
Não gostaria de acantonar a corrupção numa área política. Ela existe no sector estatal, judiciário, nas forças policiais, nas entidades privadas, onde há oportunidades e vulnerabilidades.

Rui Rio tem feito várias críticas ao MP por ineficácia ou violação do segredo de justiça. Se for primeiro-ministro, acha que o funcionamento do MP pode ser alvo de interferência.
O MP tem de defender sempre a sua autonomia face ao poder político sob pena de perder o seu estatuto.

Como avalia o desempenho da actual PGR?
Não posso comentar desempenhos da PGR. Não me compete.

Estamos perante o agravamento da pandemia e das medidas. Há sempre especulação sobre abusos de poder. A determinada altura, disse que estava disposta a oferecer a sua vacina. Vacinou-se?
Estou vacinada. Quando disse isso foi para sublinhar a minha disciplina. Mas as vacinas não podem ser um instrumento de discriminação como estão a ser nem um instrumento de estado de excepção. Vivemos há dois anos em estado de excepção e os Conselhos de Ministros, tanto em Portugal como na Europa, têm poderes inimagináveis, e isso é um perigo para a democracia.

Qual seria a alternativa?
Haver uma lei de emergência sanitária com uma previsão estabelecida para as medidas a tomar e não este arbítrio.

Como encara o fenómeno negacionista?
Não há. Isso são rótulos. As pessoas têm direito à palavra. As pessoas foram perseguidas antes e depois do 25 de Abril por causa das suas opiniões políticas. Não censuro ninguém por ter opiniões diferentes das minhas. Isso não pode ser. Quando se fala em negacionismo, já é uma censura.

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