Tiago Pitta e Cunha: “Até agora, o oceano foi como um tapete para debaixo do qual varríamos as emissões”

Para continuar a ser um país líder na agenda dos oceanos, Portugal deve proteger 30% do seu mar antes de 2026. Restaurar o oceano é também uma arma contra as alterações climáticas.

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É preciso levar o clima para as cimeiras sobre os oceanos, diz Tiago Pitta e Cunha Paulo Pimenta
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Os oceanos têm sido um parceiro menor nas negociações sobre as alterações climáticas, embora escondam 90% do calor em excesso do aquecimento global. Havia a expectativa de que o seu papel fundamental fosse reconhecido na Cimeira do Clima das Nações Unidas (COP28) no Dubai, em Dezembro passado, mas o resultado ficou aquém das expectativas. É verdade que ficou assente que o oceano tem um papel a desempenhar na absorção do carbono em excesso, que está por trás das alterações climáticas. "Procurámos que isso fosse acompanhado pelo reconhecimento da necessidade de proteger e restaurar o oceano. Mas isso não aconteceu", diz Tiago Pitta e Cunha, administrador executivo da Fundação Oceano Azul, em entrevista ao PÚBLICO.

Mas, como diz o Prémio Pessoa de 2021 e especialista na governação dos oceanos, há urgência em relacionar com o clima o compromisso assumido pelos países na Convenção da Biodiversidade das Nações Unidas de proteger 30% do planeta até 2030. As áreas marinhas protegidas são instrumentos de conservação da natureza, mas são também fundamentais na luta contra as alterações climáticas.

Portugal comprometeu-se a atingir o objectivo de proteger 30% das suas áreas marinhas até 2026, antecipando-se ao objectivo internacional. "É já daqui a dois anos, é muito optimista", considera Pitta e Cunha. Mas era bom que mantivéssemos esse objectivo, para continuarmos a destacar-nos como um país líder na agenda dos oceanos. Porém, há dificuldades, como uma legislação desactualizada.

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Tiago Pitta e Cunha: "O oceano está a tornar-se mais importante no processo multilateral de tomada de decisões nas Nações Unidas" Joana Bourgard

O que é que saiu da COP28 para os oceanos?
Há um reconhecimento do papel do oceano na problemática do clima, várias referências ao oceano e aos ecossistemas oceânicos. Mas continuamos no plano dos princípios e das declarações.

Reconhece-se que os oceanos são a base para actividades importantes para a mitigação e adaptação [às alterações climáticas], no sentido de que o oceano é vítima dos impactos da mudança do clima e ajuda a proteger os territórios do impacto dessas alterações. Mas não me parece que os oceanos deixaram de ser um parceiro menor.

Não foi suficiente?
A Fundação Oceano Azul tinha, para esta COP, um objectivo que não alcançámos. Procurámos que fosse reconhecida a necessidade de proteger e restaurar o oceano, através das áreas marinhas protegidas. Mas isso não aconteceu.

Era muito importante que o compromisso internacional assumido pelo Estado português e por mais de 100 países de chegar a 2030 com 30% (objectivo 30x30) da área marinha protegida, em legislação, fosse reconhecido também na COP do clima. Mas os processos das Nações Unidas são muito compartimentalizados: como o objectivo 30x30 foi aceite na última COP da Convenção da Biodiversidade das Nações Unidas, em 2022, considerou-se que não seria necessário fazer-se uma referência a isso nas negociações do clima. O que é errado.

Uma coisa é olharmos para as áreas marinhas protegidas como instrumentos de conservação da natureza, outra é vê-las como fundamentais na luta contra as alterações climáticas. Também servem esse propósito, está cientificamente comprovado.

Agora temos de nos concentrar na COP30, que terá lugar em Belém, no Brasil [em 2025]. É o país onde se realizou a Cimeira da Terra de 1992, onde foi aprovada a Convenção-Quadro para as Alterações Climáticas, e é talvez o país com maior biodiversidade terrestre do mundo. Esperamos que seja a COP da natureza e que o objectivo 30x30 seja consagrado nas conclusões de Belém.

Está a saltar a COP29, este ano.
Claro que vamos trabalhar também para a COP de Bacu (Azerbaijão), mas as minhas expectativas não são tão altas como para Belém.

A Fundação Oceano Azul procura passar a mensagem, principalmente para a Comunidade dos Amigos do Oceano, os países mais interessados em relacionar o oceano e o clima, de que não podemos limitar-nos a discutir o oceano nas COP do clima, onde é um parceiro menor, e estamos sempre a jogar fora de casa. Temos de levar também o tema do clima para as conferências do oceano e com uma maior profundidade.

Mas o oceano está a tornar-se mais importante no processo multilateral de tomada de decisões nas Nações Unidas.

De que maneira?
Por várias razões. Todos dizemos que 2022 foi o superano dos oceanos. Na Primavera, tivemos a notícia extraordinariamente positiva de que o Programa de Ambiente das Nações Unidas iria começar a negociação de um tratado Internacional para a poluição por plástico. O plástico acaba no mar e contribui muito para a degradação do ambiente marinho.

Tivemos depois a boa notícia de que a Organização Mundial do Comércio (OMC) tomou medidas contra os subsídios a determinadas frotas de pescas. Não foi às frotas que exercem sobrepesca, como gostaríamos, mas foi para aquelas que não são transparentes, ou que fazem pescarias ilegais. Muitas dessas frotas continuam a receber subsídios nacionais.

Depois veio a grande Conferência Internacional das Nações Unidas para o Oceano, em Lisboa. Foi muito importante a tomada de posição do Presidente francês Emmanuel Macron de defender uma moratória que impeça a mineração submarina, enquanto não houver um conhecimento cabal dos impactos ambientais trágicos que pode ter.

Até França tomar essa posição, os países que defendiam a moratória eram menos de meia dúzia, e com menos peso político. A partir daí, vieram a Alemanha, outros Estados europeus e países grandes, como o México, o Brasil. E Portugal, que, depois de uma hesitação longa e persistente, acabou por se juntar.

Neste momento, cerca de 25 países estão a tentar que a Autoridade dos Fundos Marinhos, que é a organização das Nações Unidas responsável pela mineração submarina, consiga consagrar a moratória e impedir o que seria mais um dano irreversível ao tão afectado sistema bioquímico da Terra.

E a Noruega este ano...
O ano de 2024 começou mal, com a notícia de a Noruega avançar para a exploração da mineração dos fundos marinhos. A Noruega é vista por muitos países como um modelo na utilização do mar para o desenvolvimento da sua economia, e tinha a obrigação de compreender o que está em causa para os ecossistemas. Houve uma pressa desse país de avançar sozinho na direcção errada, para não ser impedido de o fazer.

Acha que há boas perspectivas para chegar à moratória? No ano passado, a Autoridade dos Fundos Marinhos teve de adiar a decisão...
Pelo menos conseguiu-se pôr uma pedra numa engrenagem pressionada pela indústria, que está interessada na mineração submarina. A Fundação Oceano Azul considera que este é um dos temas mais importantes. Estamos a trabalhar nisto de forma muito próxima com os governos da Costa Rica e de França.

Os fundos marinhos são a última área do oceano que não está perturbada. Com todos os problemas da crise planetária que estamos a ter, acharmos que ainda nos podemos dar ao luxo de criar um novo problema parece-me de uma completa falta de sensatez.

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Um cardume de tubarões-martelo: com o Tratado do Alto-Mar, poderão criar-se áreas protegidas marinhas fora da área de jurisdição dos países MasayukiAgawa/Ocean Image Bank

Portugal está a favor da moratória, mas há, nos Açores, áreas que poderiam ser interessantes para a mineração dos fundos marinhos, não é? O que é que está aqui em jogo para Portugal?
Não há grandes estudos de prospecção com números concretos, mas é reconhecido que existem nódulos polimetálicos em algumas regiões da Zona Económica Exclusiva portuguesa. Até há crostas de cobalto. Agora, o facto de haver esses recursos não significa que devam ser explorados.

Não deixámos a Idade da Pedra porque acabaram as pedras. Deixámo-las porque encontrámos tecnologias superiores. Não é por termos ainda combustíveis fósseis nas jazidas que devemos continuar a procurá-los.

Se conseguirmos cumprir os objectivos do Acordo de Paris e salvar a humanidade de um desastre certo nas próximas gerações, por causa dos desequilíbrios climáticos, temos de deixar os combustíveis nessas jazidas. Temos de desenvolver tecnologias que nos permitam fazer a transição para uma economia descarbonizada.

O argumento principal que se usa é que esses minerais no fundo do mar são muito importantes para as baterias, por causa da mobilidade eléctrica. Mas o que é engraçado é que, há uns anos, o que se procurava para as baterias era o níquel. Agora as baterias evoluíram e procura-se o cobalto e outro tipo de materiais. Ou seja, a própria indústria, com o seu desenvolvimento tecnológico, está a mudar. E já se fala em baterias de alumínio, que não exigiriam esses materiais do fundo do mar.

Mas há um outro tema que me parece muito importante: estava a falar de 2022, e depois 2023, que deveria ser o ano da ressaca, foi novamente um superano do oceano.

Está a falar do Tratado do Alto-Mar?
Em 2023 foi, contra todas as expectativas, adoptado o tratado que estava há mais de 15 anos em negociação. É um salto quântico na protecção e na restauração do oceano, uma vez que permite estabelecer medidas de protecção do alto-mar, que é a parte do oceano que não pertence às jurisdições dos Estados costeiros e é cerca de 70% de todo o mar do planeta.

Havia um vazio legal que, com este tratado, deixa de existir. Podem criar-se áreas marinhas protegidas não estabelecidas pelo Governo do país A ou do país B, mas pelas Nações Unidas. Há grandes perspectivas para a conservação do oceano, que até à adopção deste tratado não existiam. Mais de 80 países já o assinaram. Entra em vigor quando 60 países o ratificarem.

Mas quantos países já ratificaram?
Ninguém ratificou ainda. As assinaturas foram feitas em Setembro, há três meses, nas Nações Unidas.

Certo. Mas o que é que seria urgente fazer após o Tratado do Alto-Mar entrar em vigor?
O mais urgente era começar-se um diálogo entre os países mais interessados na conservação do oceano e aqueles que têm maiores capacidades científicas e maiores laboratórios de investigação marinha, e os cientistas, para identificar as zonas que com carácter de urgência deverão ser tornadas áreas marinhas protegidas.

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A destruição de Derna, na Líbia, onde uma tempestade potenciada pelas águas quentes do Mediterrâneo se conjugou com a ruína de uma barragem Esam Omran Al-Fetori/REUTERS

Uma delas é o mar dos Sargaços, no Atlântico, que tanta importância tem para Portugal. Ali encontram refúgio muitas das espécies que passam na Região Autónoma dos Açores.

Em Portugal, foram criadas duas novas áreas marinhas em 2023. Agora, quais são os desafios para que passem do papel à prática?
Desde logo isso é histórico, porque há 25 anos que o país não criava uma área marinha protegida – no continente, porque a Madeira, em colaboração com a Fundação Oceano Azul, conseguiu aumentar a área marinha protegida das Selvagens em 2022.

O nosso país tinha uma incapacidade, eu diria grande, de criar essas áreas de protecção da natureza. Prova disso é que a última foi uma pequena área marinha protegida em Sesimbra, que é o Parque Marinho Luiz Saldanha, criada em meados dos anos 1990. Mas este trabalho tem de continuar, porque falta ainda regulamentar e passar, como disse, do papel para a prática.

A Fundação começou a trabalhar com o Governo do PS nos Açores para que se iniciassem os trabalhos para criar uma nova rede de áreas marinhas protegidas nos Açores e o trabalho continuou e foi reforçado com o Governo que cessou funções há poucos dias, do PSD em coligação com outros partidos, com o qual se conseguiu terminar o processo participativo na parte offshore dessa área marinha protegida. O processo dos Açores está dividido em duas partes, offshore e costeira. Para entrar em vigor, terá de ser levado à Assembleia Legislativa Regional, o que esperamos que venha a acontecer na próxima legislatura açoriana, depois das eleições em Fevereiro.

Em Portugal continental, foi aprovada pelo Governo uma área marinha protegida no Algarve no final de 2023. A Fundação Oceano Azul, em estreita colaboração com a Universidade do Algarve, e com o apoio de três câmaras municipais, Silves, Lagoa e Albufeira, foi desenvolvendo o projecto em três anos de processo participativo, com mais de 15 associações de pescadores, com as organizações não-governamentais, mas também com associações empresariais do Algarve, ligadas ao turismo.

A área do Algarve não é muito grande, tem 156km quadrados, mas ali encontra-se a maternidade das pescarias do Algarve. Tem uma importância fundamental para salvaguardar a pequena pesca algarvia, e que tem estado em declínio absoluto nos últimos 30 anos.

Estamos a ver se em 2024 conseguimos fazer progressos grandes numa outra área marinha protegida, também de interesse comunitário, como a do Algarve – ou seja, em que as comunidades estão no início do projecto e depois o acompanham e desenvolvem. Neste caso, estamos a trabalhar com as câmaras municipais de Cascais, Sintra e Mafra.

E quanto ao objectivo de proteger 30% das áreas marinhas até 2030, estamos bem encaminhados ou nem por isso?
Portugal está longe de estar nesses níveis. O primeiro-ministro cessante tomou a decisão de que os 30x30 deviam ser alcançados em 2026. Ora, 2026 é daqui a dois anos. É muito optimista, mas é uma boa indicação, para que a administração central se mobilize.

Portugal deveria mesmo antecipar-se a 2030. É fundamental para um país ser líder na agenda internacional do oceano e beneficiar dessa imagem nas Nações Unidas – o que traz benefícios para eleições, por exemplo, para o Conselho de Segurança. Há muitos países, como os pequenos Estados-ilha, em vias de desenvolvimento, que olham com admiração para os que procuram fazer avançar os dossiers da conservação e da restauração do oceano.

Quais são as dificuldades?
O contributo dos Açores vai ser determinante para esse objectivo, uma vez que é lá que existe a maior parte do mar sob jurisdição nacional. Mas não chega, é necessário criar mais áreas marinhas protegidas. E é importante pensar também em termos de qualidade, ou seja, do que é que se está a proteger. Porque é fácil protegermos um mar onde não há usos económicos, e é muito mais difícil proteger o mar, por exemplo, no Algarve, que é talvez uma das áreas marinhas costeiras da Europa mais ocupadas.

Portugal vai ter de simplificar um pouco, se calhar, a sua legislação para gerar áreas marinhas protegidas, porque não está actualizada, é muito confusa, a terminologia podia ser harmonizada. Aliás, a Fundação Oceano Azul tem vindo a defender que devia haver uma directiva europeia que harmonizasse a terminologia e simplificasse os passos legislativos e administrativos.

Há muitos receios com as eleições europeias, antecipando a vitória da direita e até de forças de extrema-direita, de que a agenda ambiental europeia possa sofrer um recuo. Concorda com isto?
Acho que é impossível haver recuos. Acho que há um grande consenso na Europa sobre certas matérias e a prova disso é o Pacto Ecológico. Tenho muito mais receio do que possa acontecer nos Estados Unidos, com as eleições no Outono. Para as grandes decisões mundiais multilaterais, os EUA são determinantes, como soubemos pelos anos de interregno da sua participação no Acordo de Paris, no mandato do Presidente Donald Trump.

E isto é trágico, porque estamos verdadeiramente numa situação limite. Algo que me espantou, quando estive na COP28, no Dubai, foi ouvir alguns dos melhores cientistas do mundo reconhecer que estão absolutamente surpreendidos com a aceleração do desequilíbrio climático.

Este ano o oceano aqueceu muitíssimo e pelo quinto ano consecutivo. Isso traduz-se num aumento da energia do oceano, que se tem dissipado através de fenómenos atmosféricos extremos.

Houve algo para mim muito relevante, que foi o mar Mediterrâneo ter temperaturas médias – não máximas, médias – de 28,4 graus. O que levou a grandes tempestades, aqueles grandes desastres atmosféricos que ocorreram na Líbia e que provocaram uma perda de vidas maciça.

Se não fosse o oceano absorver mais de 90% do excesso de calor gerado pelo aquecimento global, teríamos, segundo os modelos científicos mais conservadores, mais 17 graus Celsius na atmosfera, o que significaria que já não estaríamos cá.

Temos de olhar para o oceano. Até agora, o oceano contribuiu para esconder a verdade. Foi como um tapete para debaixo do qual varríamos as emissões [de gases com efeito de estufa] e depois continuávamos com uma atmosfera na nossa sala de estar bastante agradável.