A agenda do Governo para a mineração no mar
Há já dezenas de licenças para explorar o fundo marinho, algumas de legalidade duvidosa. Mas também há grandes empresas que apelam a uma moratória, até que todos os riscos sejam compreendidos.
“Mineração significa destruição e, neste caso, significa a destruição de um ecossistema sobre o qual sabemos pateticamente pouco”. David Attenborough justificou, assim, o seu apelo a uma moratória para a mineração em mar profundo.
Uma posição partilhada por Ricardo Serrão Santos, ex-ministro do Mar, quando confrontado com as intenções extrativistas dos seus congéneres de Governo, na legislatura passada. Recuou, depois, dizendo que a moratória “só faz sentido” para “os fundos marinhos sob jurisdição internacional”, não para o mar português.
Os fundos marinhos são a última fronteira do planeta. Pouco se sabe sobre as planícies abissais que se estendem entre plataformas continentais, a milhares de metros de profundidade. Nas fontes hidrotermais – fissuras nos leitos oceânicos onde a vida na Terra pode ter começado – há uma explosão de vida que a ciência começa a conhecer. Apenas em 1977, perto das ilhas Galápagos, se soube da sua existência, oito anos após a primeira visita à Lua. Em 2018, foi encontrado um novo campo hidrotermal nos Açores. Há muitos segredos por desvendar.
Apesar de não existir mineração comercial, há já dezenas de licenças para explorar planícies abissais, montes submarinos e fontes hidrotermais, algumas das quais de legalidade duvidosa. A corrida de governos e multinacionais à extração de lucro das profundezas oceânicas é feita em nome da descarbonização. Uma justificação contrariada até por algumas grandes empresas que apelam a uma moratória até que todos os riscos sejam compreendidos.
Há muito por estudar, mas sabe-se que as máquinas colossais idealizadas para dragar o fundo oceânico aniquilariam tudo o que se atravessasse à sua frente. Também levantariam nuvens de sedimentos que se propagariam pela coluna de água, provavelmente por milhares de quilómetros, acabando por sufocar e soterrar organismos de latitudes distantes. Podemos apenas imaginar os efeitos que tal destruição provocaria na ecologia dos oceanos e nas pescarias que sustentam as comunidades costeiras.
Em Portugal, o governo dá os primeiros passos. A versão da regulamentação da lei dos depósitos minerais do Ministério do Ambiente, que esteve em consulta pública em julho de 2020, atribuía à Direção-Geral dos Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos o poder de emitir títulos de utilização privativa do mar. Abriam-se as portas à mineração no mar português.
O governo recuou depois do protesto de forças de esquerda e de organizações ecologistas. Em maio de 2021, apresentou no Parlamento uma versão do diploma da qual retirara todas as referências à mineração no mar. Admitiu o erro e fez bem.
Mas a vontade não esmoreceu. Em junho de 2021, o governo aprovou a Estratégia Nacional para o Mar 2030 onde surgem referências inequívocas à mineração. Referindo-se aos minerais marinhos, o documento diz ser “estratégico para o país avaliar o potencial dos seus recursos, bem como a distribuição espacial de eventuais reservas”, sendo este conhecimento “crucial para a criação de zonas piloto”. A ideia é mesmo avançar.
O novo governo
A nomeação de António Costa Silva para a liderança do novo Ministério da Economia e do Mar veio confirmar as intenções extrativistas dos recentes governos do Partido Socialista. O engenheiro de minas é há muito um entusiasta da mineração no mar português.
Em 2012, antevia, em entrevista, que “a grande tendência é a crescente mineração dos recursos marinhos”. E classificava como “imensa ‘Índia Marítima’ projetada no Oceano Atlântico” o espaço marítimo reivindicado pelo Estado português com a ampliação da extensão da plataforma continental. As novas colónias seriam agora os fundos marinhos desconhecidos.
Na mesma entrevista, Costa Silva destacava “a mancha de sulfuretos polimetálicos localizada a sul dos Açores, as crostas de níquel e cobalto, os campos hidrotermais localizados ao longo da Crista Média Atlântica com ocorrências de cobre, zinco, chumbo, ouro e prata e os recursos de petróleo e gás que possam existir na Bacia de Peniche, na Bacia do Alentejo e no offshore do Algarve.” Um maná dos céus para o qual o país deveria ser “capaz de atrair capital estrangeiro através de uma política de alianças com os Estados Unidos da América, a Alemanha, o Brasil e a Noruega.” Costa Silva cantava um hino ao extrativismo internacional em plena crise ecológica e climática.
No seu documento precursor do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), Costa Silva, então consultor do governo, concretizaria propostas para a mineração marinha. O governo deveria ponderar vários planos de investimento para o mar, entre os quais um para a exploração de “sulfuretos polimetálicos” e outro para “as crostas de níquel, cobalto e manganês”.
As propostas extrativistas viriam a gerar contestação na fase de consulta pública do documento, acabando por ser retiradas da versão final do PRR. Mas manteve-se a intenção: o governo vai destinar 32 milhões de euros do plano ao desenvolvimento do “Cluster do Mar dos Açores” para desenvolver “áreas tradicionais e emergentes”, onde inclui os recursos minerais.
Começa a concretizar-se a visão de Carlos César, presidente do Partido Socialista, para o mar dos Açores. Há dez anos, quando liderava o governo regional, defendeu, nos EUA, que “temos que aproveitar o interesse que inúmeros países e empresas de todo o mundo têm pela prospeção e exploração dos nossos recursos minerais”. Em 2017, já deputado à Assembleia da República, apresentou uma iniciativa para promover a “valorização da extensão da plataforma continental”, destacando a “mineração no fundo do mar” como uma das atividades mais interessantes.
Em 2020, perante o Painel do Oceano, António Costa comprometeu-se a gerir de forma sustentável 100 por cento das águas nacionais até 2025. No mesmo ano, cientistas envolvidos nos trabalhos do Painel publicaram um artigo na revista Nature no qual concluem que “existe um conflito inerente entre o dever de proteger o meio ambiente marinho e o apelo para explorar metais no fundo do mar”. Será uma referência à contradição entre o discurso e a prática do governo?