Da casa de Branko avista-se o mundo todo

No início os Buraka Som Sistema eram periferia. Agora Branko está no centro. No álbum Nosso liga as pontas entre esses eixos. Hoje Lisboa é outra cidade. E este é o momento da verdade para ele.

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nuno ferreira santos

Durante anos era o caminho para casa. Passava o viaduto Duarte Pacheco, começava a subir no sentido do parque florestal de Monsanto e depois virava à direita, na direcção da Amadora, conta-nos João Barbosa, mais conhecido por Branko, um dos fundadores dos dissolvidos Buraka Som Sistema, que lança a 1 de Março o segundo álbum solitário, Nosso. “Era como se Monsanto funcionasse como uma espécie de separação entre um espaço mais urbano, o centro de cidade, e a Lisboa metropolitana”, diz. 

Na actualidade, esse horizonte de Monsanto vê-o a partir da varanda de sua casa, em Lisboa, ali, algures, onde Campo de Ourique se confunde com Campolide. “Desde miúdo que tenho essa imagem de Monsanto e quando vim habitar para Lisboa procurei uma casa que tivesse essa perspectiva. Antes tinha esse ângulo quando saía de Lisboa. Agora é quando chego a casa”, afirma, reflectindo que a silhueta da capa do álbum é inspirada nessa relação com aquela zona da urbe. “É incrível como a cidade se foi transformando com os anos”, medita. “Hoje em dia já é difícil encontrar muitos pontos diferenciadores entre a Amadora e Lisboa.”

No início os Buraka eram periferia. Agora Branko está no centro. A sua música ainda contém ingredientes de adrenalina, nervo e líbido. Qualquer coisa de indomesticável e por cartografar. Mas agora o que existe acima de tudo é sensualidade, envolvência e até alguma melancolia. Dir-se-ia que foi um dos primeiros a perceber que a euforia do kuduro poderia procurar pontos de intersecção com outras linguagens de balanço rítmico mais voluptuoso, que por vezes apenas ouvidos experimentados conseguem destrinçar, sejam a kizomba, o afro-house ou o tarraxo.  

Ele não o verbaliza desta forma, mas dizemo-lo nós. É como se inconscientemente em Nosso tivesse conseguido ligar as pontas soltas que separavam centro de periferia, reflectindo precisamente que hoje fazem parte da mesma verdade indissociável. Pelo menos em termos culturais. Porque depois o que se vislumbra, no plano económico e sociopolítico, é que essa realidade continua em grande medida por afirmar, movida por avanços e recuos. E pelo desconhecimento que ainda se sente em relação a tantos contextos, como ainda agora o caso do bairro da Jamaica veio demonstrar.

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Monsanto: para uns continua a ser um lugar misterioso na periferia de Lisboa; para Branko é o coração da cidade, o seu fluxo vital Nuno Ferreira Santos

Por vezes a arte antecipa o que se segue, mesmo quando não existe rede de comunicação entre realidades distintas, por ausência de articulação económica e de construções culturais que tornem desejável essa interlocução. Às vezes é como aquele arquitecto que é capaz de perceber as possibilidades de uma casa em ruínas mesmo se para os leigos é apenas um monte de escombros. O que falta é activar, interligar, estimular. Não através de marketing manhoso. Mas de narrativas. Por exemplo, a música. Ao longo dos anos – umas vezes de forma consciente, outras nem tanto –, Branko não tem parado de o fazer. Como ele diz: “Às vezes parece que não conseguimos pensar Lisboa para além dos pastéis de nata, do fado, da Ponte 25 de Abril, enfim, esses ícones que conhecemos.” É preciso olhar à volta e perceber que essa cidade é hoje muito diferente, com outras referências que também importa amparar.

Hoje não existe propriamente um centro na grande Lisboa. Ou a haver talvez seja a própria ideia de mobilidade, de dinâmica, onde coabitam o urbano e o industrial, com a floresta de Monsanto ou o rio de permeio, conforme o ângulo onde nos situamos e para onde nos queremos deslocar. Às vezes é apenas uma questão de olhar as coisas de outra forma. Como Branko em relação a Monsanto: para uns continua a ser um lugar misterioso; para outros, como ele, é o coração da cidade, o seu fluxo vital. O mesmo com o rio. Olhamos quase sempre para ele como limite, ou mesmo como barreira anímica, e raramente como ponto de ligação.

A potencialidade da música é essa. Não existem impossíveis. Branko sonha e a música brota. “Às vezes perguntam-me se existe uma nova música de Lisboa. Para mim, existe. Não é um género. São uma série deles. Entre eles os que são influenciados pela presença de novas gerações de afrodescendentes dos países de língua portuguesa. É inegável que isso está a ter impacto na música que é feita aqui e numa série de ramificações sonoras. E isso vai continuar a ser descoberto. Há mais de dez anos, quando os Buraka começaram, tudo aquilo que fazíamos tinha qualquer coisa de alienígena e em bruto para a maior parte das pessoas. Hoje essa realidade disseminou-se e temos muitos e novos produtores de música de dança, mas também quem faça canções. Há muitas ramificações.”

O primeiro álbum de Branko, Atlas, é de 2015, e tinha um conceito fechado. “Constituía uma viagem por cinco cidades e a ideia era captar um pouco da realidade cultural e musical mais subterrânea dessas urbes, trabalhando com vários artistas locais. Agora a ideia foi mais aberta. Não existia propriamente um percurso. Tinha a certeza de que queria começar e acabar em Lisboa, mas pelo meio foram acontecendo uma série de coisas sem ideário. Foram acontecendo gravações com vocalistas e músicos, por todo o lado. Houve muita gente a contribuir com texturas, ideias e vozes.”

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No início os Buraka eram periferia. Agora Branko está no centro. É como se em Nosso tivesse conseguido ligar as pontas soltas que separavam o centro de periferia, reflectindo que hoje fazem parte da mesma verdade indissociável nuno ferreira santos

O Nosso do título refere-se às marcas identitárias que poderão distinguir qualquer coisa que faz sentido agora, aqui, em Lisboa, e em Portugal, mas também à afirmação de uma vontade colectiva inclusiva na qual todos são convidados a participar. “Acima de tudo é um disco que reflecte diferentes inspirações, com vozes dos quatro cantos do mundo, e uma música que faz sentido neste tempo. Inicialmente havia 40 temas instrumentais e depois de essas ideias terem sido expressas começou todo o processo – gravar, experimentar, apagar, acabar ou regressar ao início.”

A abordagem do fã

Se em Atlas a ideia era mostrar que existiam linguagens musicais conotadas com diferentes cidades do globo, agora foi criar um corpo sonoro que reflectisse as influências transatlânticas que afluem a Lisboa e dar-lhe novas tonalidades com uma série de convidados vocais, como Sango, Dino d’Santiago, Cosima, Mallu Magalhães, Miles From Kinshasa, Pierre Kwenders ou Dengue Dengue Dengue. “Acaba por ser um álbum diverso, com quatro línguas, temas mais ritmados e outros mais atmosféricos. Não acho que tenhamos de ir atrás de formatos, mas, talvez por causa de plataformas como o Spotify ou a Apple music, acabamos por consumir mais canções individuais. Talvez este álbum reflicta isso.”

É uma visão. A nossa é outra. Nosso reflecte coerência. Existem muitos elementos a povoar cada uma das canções e diferentes vozes, ritmos e texturas, mas fica a sensação de uma respiração semelhante para cada um dos temas, com uma definição espacial e temporal apurada em todos eles.  

Do ponto de vista da construção do disco, as principais dificuldades podem advir do facto de não existir muito tempo para aprofundar relações humanas. “Há uma coisa muito bonita nesse gesto de duas pessoas que não se conhecem muito bem sentarem-se em estúdio para colaborarem. Mas é preciso ter noção de que isso também pode ser inibidor. Por mais aberto, e flexível, que sejas, nunca se sabe o que vai acontecer.”

Na maior parte das vezes, diz Branko, a sua abordagem às pessoas com quem deseja colaborar é a de um fã. “Já as ouvi alguma vez e digo-lhes, de forma genuína, que gosto da sua música e que adorava ter tempo para, um dia, nos sentarmos, falar e encetar uma colaboração. Em alguns casos podem ser pessoas amigas de outras pessoas que encetam esses contactos, mas na maior parte das vezes a iniciativa advém do meu lado.”

Em 2015, no seu anterior álbum, já haviam colaborado uma série de nomes (Princess Nokia, Cachupa Psicadélica, Skip & Die ou The Clerk) e existiram inclusive canções resultantes de contributos efectuados (Mayra Andrade ou Cícero) que acabaram por não constar do disco. “Às vezes existem canções que, por boas que sejam, no conjunto do álbum acabam por não fazer grande sentido, como acontecia nesse caso, como há coisas que vão sendo gravadas e que nunca são finalizadas.” É preciso que num processo colaborativo exista uma certa empatia? “Sim, essa química é importante, mas nem sempre é garantia de alguma coisa. Às vezes acorda-se no dia seguinte e percebe-se que, afinal, estava tudo errado.”

No caso do presente disco todas as gravações efectuadas nos Estados Unidos acabaram por ser esquecidas. “Algumas dessas colaborações foram com pessoas de uma veia mais pop, e outras mais rap, que gravei em Los Angeles e Nova Iorque, mas no final percebi que não queria ir muito por ali e acabei por retirar esses registos do material a trabalhar.”

Às vezes fala como o realizador de cinema que tem de justificar a montagem final de um filme, as cenas que foram esquecidas ou cortadas em favor de outras, contra a opinião dos próprios actores, que não se revêem nas opções. Ri-se. “Sim, é um processo que nem sempre é pacífico porque se criam expectativas, mas no caso do cinema é diferente. Dá-me ideia que um realizador tem mais controlo. No meu caso tento manter as pessoas a par do processo. Explico o que fiz ou que pretendo fazer. Há uma lógica de colaboração flexível que não passa pelo modelo de conceder ordens.”

O momento da verdade

De todos os membros dos Buraka, ele foi quase sempre o mais activo fora do âmbito do grupo, actuando um pouco por todo o mundo como DJ, ao mesmo tempo que lançou vários singles, remisturas e mixtapes (Drums, Slums & Hums, de 2013), para além do álbum Atlas. Mas quando esse registo foi editado o grupo ainda estava em actividade. Agora o panorama é diferente. É uma espécie de momento da verdade para ele.

“O Atlas funcionou como projecto paralelo, embora do lançamento na ZDB ao concerto na última passagem do ano no Terreiro do Paço, passando pelo documentário para a RTP2, tenha sido uma aventura fascinante. Mas, sim, agora existiu outro controlo e direcção. Há aqui um propósito de afirmação maior daquilo que é a minha visão da música, ao mesmo tempo que existe um processo de crescimento.”

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O Nosso do título refere-se às marcas identitárias que poderão distinguir qualquer coisa que faz sentido agora, aqui, em Lisboa, e em Portugal, mas também à afirmação de uma vontade colectiva inclusiva na qual todos são convidados a participar nuno ferreira santos

Nos movimentos finais dos Buraka era perceptível que uns puxavam mais pela cadência rítmica, pela sonoplastia e pelo nervo, enquanto outros se posicionavam mais próximos da ideia de canção. “Sou viciado nessa noção de composição, de levar uma ideia musical a um extremo, agarrando numa voz para a desconstruir, experimentando, montando e desmontando. Por um lado interessa-me inovar, por outro perceber como é que se pode ser ainda assim apelativo. Situo-me nessas margens. Equilibro-me nessa dinâmica. Mas isso também acontecia nos Buraka. O meu lema é: se uma canção funciona numa versão de guitarra e voz, ou de piano e voz, também funcionará a partir da combinação voz e ritmos.”

Depois do apagamento dos Buraka poderia advir um certo vazio. Mas Branko rejeita a ideia. “As coisas fluíram normalmente. Houve mais espaço que foi preenchido com mais atenção à estrutura da Enchufada. Criou-se uma residência mensal em Lisboa, no B’ Leza, e uma trimestral no Porto, nos Maus Hábitos, ao mesmo tempo que fui criando este álbum e produzindo para outros artistas.” Entre eles, a britânica M.I.A. ou a angolana Carla Prata. “A produção é todo um mercado que para ser bem feito exige muita dedicação”, reflecte. “Para chegar a essa música da M.I.A. tive de fazer seis. É impossível não se perder um pouco da nossa identidade enquanto artista para se abraçar a ideia do produtor.”

Um dos grandes desafios para músicos-produtores como ele, feito o disco, é como mostrá-lo depois em palco, partindo-se do pressuposto que o irá fazer de forma solitária. “A música electrónica já não é apenas aquela coisa que se ouve de madrugada, na discoteca, noite fora. Esse conceito está ultrapassado. Daí que com este disco, pelo menos em Portugal, irei apresentá-lo em teatros, como o Theatro Circo, de Braga, ou o Teatro Aveirense, de Aveiro. Parece-me que existem condições para fazer esse circuito que tem estado confinado aos cantautores. Se queremos que a electrónica seja reconhecida como fonte vibrante e actual de cultura, é preciso diversificar a forma de agir. É esse o desafio. Haverá dois convidados vocais, imagens de documentários, criando vínculos entre música e imagens, e sincronização entre som e vozes, com imagens de estúdio.”

Para além de datas em Portugal, já tem outras importantes actuações marcadas pela Europa fora para os próximos meses (do Sónar de Barcelona ao Jazz Café de Londres, passando pelo Gretchen de Berlim). Uma das coisas que o motivam agora é tentar afirmar de uma forma mais peremptória, em termos globais, música portuguesa ou dos países de língua portuguesa. Está longe de ser um facto novo – nos últimos 20 anos várias expressões locais de cultura pop foram criando alternativas ao dominante eixo anglo-saxónico –, mas dir-se-ia que, na actualidade, o assunto tem tido mais visibilidade, em parte pelo sucesso da espanhola Rosalía.

“Para mim foi o maior fenómeno de 2018, criando um espaço que não existia, e fê-lo de forma brutal. O que é incrível é que ela pode mover-se no mercado da música latina, que é um gigante da indústria discográfica, ao mesmo tempo que tem presença global. Daqui a dez anos, quem sabe, se a música dos países de língua portuguesa não poderá ser também uma força preponderante da música mundial?”

Quem tem trilhado um percurso próprio, mas com algumas características semelhantes a Rosalía, na forma como faz coabitar de forma descomplexada características do fado com novas linguagens urbanas, é o português Pedro Mafama, que Branko conhece bem. “Estagiou na Enchufada, tenho seguido os seus passos com atenção e sinto que é um desses casos de uma nova geração que já assimilou uma série de novas referências que convergem aqui e que transporta para a sua música.”

Quem ele conhece também perfeitamente é a brasileira Mallu Magalhães, que habita em Lisboa, e que canta numa das faixas mais apelativas do álbum, mais um exemplo de alguém que vem do universo da canção e que aterra em Nosso. “Existe uma nova dinâmica a acontecer. E isso até se sente a ouvir rádio. Hoje já é normal ouvir António Zambujo e de seguida o Cafeína do DJ Dadda com o Plutónio, talvez o primeiro grande sucesso de afro-house a passar na rádio nacional. Claro que ainda haverá muito por fazer – talvez até mais enquanto processo social –, mas os eventuais obstáculos vão-se esbatendo e as coisas vão seguindo o seu rumo.”

Há um movimento duplo, que apenas na aparência pode parecer paradoxal. Quanto mais visibilidade vai ganhando uma dinâmica cultural crioula, miscigenada ou transcontinental, mais marcas de resistência, preconceito ou racismo vão surgindo no espaço público. Por norma é em alturas de afirmação que também existem focos maiores de reactividade.

“Isso é totalmente verdade”, concorda. “E por outro lado quem vai tendo alguma visibilidade acaba por também não encaixar num movimento musical pré-existente. É o caso do Dino d’Santiago, que tanto canta em português como em crioulo, o que cria afinidades mas também resistências. Mas existe muita curiosidade sobre o que está a acontecer, mais até fora de Portugal, de contrário não teria pessoas da Rolling Stone a telefonarem-me com interesse sobre artistas ou movimentos musicais que aqui vão germinando.” Isso é inegável. Já com os Buraka foi assim.

O mesmo se podendo dizer da actividade de Batida, Throes + The Shine, DJ Marfox, Nigga Fox ou Nídia, todos eles com um percurso internacional mais consolidado do que aqui. E depois existe a circunstância de Madonna ter vindo a descobrir alguns desses sons e de até poder ter sido influenciada por eles no álbum que estará a gravar. “A ideia musical não é desprovida de sentido, com ela a inserir-se num sítio, neste caso Lisboa, inspirando-se em algumas das suas raízes e transformando-as numa linguagem sua. Agora se isso na prática vai resultar, não sei, porque no caso de alguém como ela existem sempre muitas intermediações. Ou seja, entre a ideia inicial e a sua execução final há muitos intervenientes que inevitavelmente acabam por interferir no processo. Agora o facto de ela mostrar interesse sobre o que está a acontecer é relevante sem dúvida.”

Uma coisa é certa. A Lisboa que viu nascer os Buraka já não é a mesma que agora recebe Madonna e assiste ao lançamento de Branko. Sintoma de que os Buraka nunca mais regressão? “Não temos falado sobre isso. Temos falado, isso sim, sobre a música que fizemos, o legado, a forma de agregar tudo o que está disperso e que fizemos numa mesma estrutura.”

O horizonte hoje é outro. Não é apenas Monsanto que se vê a partir da varanda da casa de Branko. É o mundo todo. Basta, ao mesmo tempo, continuar a sonhar e ter os olhos bem abertos.

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