Um flamenco-pop chamado Rosalía

Após um primeiro disco em que anunciava uma revolução, Rosalía vai mais longe em El Mal Querer. Com co-produção de El Guincho, este é agora um flamenco com pinta de pop-r&b.

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Há pouco mais de um ano, quando o Ípsilon se encontrou com Rosalía em Barcelona, a cantora de 23 anos estava ainda a dar os primeiros passos na sua revolução pessoal do flamenco. O soberbo Los Ángeles, gravado em parceria com o guitarrista Raül Refree, espalhava o seu fogo interpretativo, de uma miúda crescida na Catalunha, sobre uma guitarra acústica desassombrada e pouco domesticável pelo cânone. Os trejeitos de flamenco anunciavam-se em cada verso desse primeiro disco, mas a escola de indie rock de Refree (ele que antes produzira a cantora de flamenco Rócio Márquez ou a rapper La Mala Rodríguez, mas sobretudo desenvolvera uma preciosa colaboração com a cantora Sílvia Pérez Cruz) atirava a música para um outro sítio, pouco óbvio, cavando o lugar de um flamenco impuro e que em temas como De plata ou Catalina tresandava a uma natureza selvagem. Essa abordagem, num álbum que versava a morte e incluía uma versão arrasadora de I see a darkness, de Bonnie “Prince” Billy, tornava claro que Rosalía não era mulher de se ficar pelos tablaos a agradecer e a sorrir a turistas ou de se percorrer o mundo com uma versão polidinha e oficial da canção andaluz.

Los Ángeles já então atirara o seu nome para capas de revista em Espanha, mas o fenómeno que então se anunciava parecia ainda algo velado. Em Setembro de 2017, mesmo em Barcelona encontrar uma cópia do seu álbum de estreia não era tarefa fácil e até quando se conseguia esse esforçado feito as canções de Rosalía descobriam-se anonimamente enterradas no meio de outras produções de flamenco. Quando, nesse mesmo mês, se apresentou pela primeira vez em Portugal, no Theatro Circo, em Braga, corria também já o rumor de que o duo com Refree teria os dias contados. E era impossível não recear que o destino de Rosalía fosse enveredar por um perfil mais anódino e talhado para as grandes salas da world music como acontece com Concha Buika, numa mescla sonora tão mastigada e apontada ao gosto médio que todo o verdadeiro sabor se esvai pelo caminho.

Era difícil de prever, tendo em conta a forma apaixonada como Rosalía se referia à tradição do flamenco – a sua epifania aconteceu quando, aos 13 anos, ao sair da escola, se juntou a alguns amigos num parque da cidade e foi surpreendida pela música que era cuspida das colunas de um carro de portas escancaradas, descobrindo a voz imensa de Camarón de la Isla –, a reviravolta que estava no horizonte. Retrospectivamente, havia algumas pistas que Rosalía lançava de forma discreta ao Ípsilon quando contava que, antes de arriscarem sequer uma primeira canção a dois, a cantora e Raül tinham passado longas tardes a mostrar-se gravações de Niña de ls Peines, Lole y Manuel, Kendrick Lamar ou Kanye West.

Aquilo que se começou a perceber a meio deste ano, com o lançamento dos singles Malamente e Pienso em tu mirá, era que no espaço de um ano Rosalía se transformava numa outra revolucionária – bem mais afoita – do flamenco, capaz de provocar verdadeiras ondas de choque entre aqueles para quem o género deve ser mantido o mais rente possível à tradição. Co-produzida por El Guincho, em El Mal Querer Rosalía transplanta a sua voz para um cenário agora feito de paisagens r&b, hip-hop e electrónicas, colocando-a no espectro largo da pop. E o efeito é de tal maneira certeiro na sua intenção de levar o flamenco para o mainstream e para a arena pop global que publicações tão distintas quanto The Guardian, Rolling Stone e Pitchfork não se têm cansado de a levantar em ombros como a grande lufada de ar fresco por que o mundo pop desesperava. Ouvido pelo New York Times, Enric Palau, director do festival Sonar, diz que “ela poderia ser a Rihanna do flamenco”. Em entrevista ao El Mundo, Rosalía sacode as compações com Beyoncé e Rihanna num lapidar “Sejamos sérios”.

Em Espanha, no entanto, o sentimento é menos consensual. Se não falta quem aplauda a ousadia de pensar o flamenco no século XXI – Almodóvar já lhe deitou a mão e chamou-a para o lado de Penélope Cruz no seu próximo filme Dolor y Glória –, chovem também críticas acintosas de oportunismo e de abastardamento do género. A ponto de algumas associações ciganas, mais ciosas do património flamenco, a acusarem de apropriar-se indevidamente de símbolos e tradições que supostamente não lhe pertencem – sendo ela uma paya (designação cigana para aqueles que não pertencem à sua comunidade). Rosalía, ainda ao El Mundo, contesta que “a música não tem nada que ver com o sangue nem com o território”. Lembrando que estudou durante vários anos as raízes do flamenco, recusa a hipótese de alguém se arrogar proprietário dessa música – ou de qualquer outra. “E não acontece nada por experimentarmos com ele [o flamenco]. É são.”

El Mal Querer é um disco conceptual acerca de uma mulher aprisionada pelo marido devido ao ciúme deste (inspirado na novela anónima do século XIV Flamenca); à medida que as canções avançam, também a mulher se vai libertando da sua condição e vingando como figura de poder feminino – “a ningún hombre consiento que dicte mi sentencia”, canta no tema final. Musicalmente, o atrevimento de Rosalía é brilhante em temas como Bagdad, Pienso en tu mirá, Malamente ou Maldición, acerca-se dos Ojos de Brujo sempre que o flamenco se escuta mais autêntico (excelente em Que no salga la luna ou Di mi nombre), e só aqui e ali perde o pé e se torna quase um efeito. Mas El Mal Querer consegue aquilo que Los Ángeles só lograva sugerir: muda em definitivo o rosto do flamenco. E esse rosto, longe dos terraços de Sevilha, equivale a um nome: Rosalía.

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