Há um novo António Zambujo que soa a Tom Waits e Beach Boys

Após um interregno dedicado às canções de Chico Buarque, o cantor regressa com um extraordinário disco em que ouvimos ecos de Caetano Veloso, sim, mas também a pop mais clássica e um perfil orquestral.

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Em Setembro de 1975, enquanto António Zambujo dava voz aos seus primeiros choros em Beja, do outro lado do Atlântico Tom Waits ia frequentando os mesmos lugares pouco recomendáveis de sempre enquanto tentava convencer o seu público de que o piano bebia mais do que ele próprio. Dois meses antes, no final de Julho, Waits tinha gravado ao vivo nos Los Angeles Record Plant Studios o imbatível álbum-concerto Nighthawks at the Diner, em que histórias se transformavam em canções quase sem darmos por isso, para logo depois voltar àquelas digressões que se estendiam por todo o país e pareciam não ter fim. Mais tarde, recordaria tais meses à Rolling Stone: “Estive doente ao longo de todo esse período… Viajava bastante, vivia em hotéis, comia comida má, bebia muito – demasiado. Há um estilo de vida que já está ali antes de chegarmos e depois somos apresentados. É inevitável.”

Nos intervalos da estrada, Tom Waits jogava brevemente ao sedentarismo no Tropicana Motel, em Los Angeles, com a namorada de então Rickie Lee Jones – os dois tinham-se conhecido através de Chuck E. Weiss. E Weiss, companheiro de noitadas de ambos, havia de ser nomeado em canções como Jitterbug boy ou I wish I was in New Orleans, essa magnífica ode aos paradeiros nocturnos de uma cidade, gravada por Waits em Small Change, em que a sua voz envelhecia milagrosamente pelo menos três décadas. A canção há muito que mantém Zambujo debaixo de um estado de encantamento. E foi esse espírito de uma memória longínqua e próxima, do desejo dorido de estar num outro lugar, que Zambujo seguiu ao compor Retrato de bolso. A inspiração na canção de Waits é assumidíssima – tanto assim que o arranjo de piano e cordas segue as mesmas pistas – e esse dado foi também passado a Aldina Duarte quando lhe pediu a letra. E a fadista, conhecendo-lhe a vida além das canções, não quis saber de boémias e escreveu-lhe uns versos para se despedir do pai.

Ouve-se de facto Tom Waits a pairar nas cordas de Retrato de bolso, um dos temas mais desprotegidos no alinhamento de Do Avesso, 2 minutos e 48 segundos sem grande máscara e entre aqueles que mais respeitam a ideia inicial que Zambujo passou aos seus companheiros de composição de querer esculpir um álbum em torno da(s) memória(s). Só que as letras e as canções foram chegando e as memórias, sem desaparecerem – Catavento da Sé, composição de Miguel Araújo, recupera a lembrança da rua da sua avó, Moda antiga, de João Monge lança a âncora nos seus dias alentejanos –, mostraram-lhe que ficar agarrado a elas implicaria perder o disco.

Se é por Tom Waits que começamos é porque existe um forte simbolismo no espaço que ocupa em Do Avesso. Há muitos anos, desde que António Zambujo começou a sua lenta mas continuada deflexão do fado, as suas entrevistas deixavam sempre saber que Waits e Chet Baker eram referências fundamentais para a sua música. Baker, na sua voz frágil e soprada furava com mais facilidade até temas como A tua frieza gela ou Queria conhecer-te um dia, mas, ainda assim, era de João Gilberto e de Caetano Veloso que mais se falava e de quem Zambujo mais se aproximava. Em Do Avesso, Caetano mantém-se, como acontecia já nos últimos anos, enquanto farol mais destacado, mas esse é um lastro que agora se sente sobretudo nas linhas vocais.

Neste álbum que baralha de novo as coordenadas e faz uma marcha-atrás estilística no caminho de Zambujo, é agora “o lado mais anglo-saxónico, mais folk, mais irish que acaba depois por influenciar a música americana” a fazer-se sentir. “É essa a essência deste disco – a haver uma”, acredita o músico. Zambujo fala de folk, mas há também uma sugestão jazzística constante em fundo. Do Avesso funciona como uma inversão de marcha em relação aos últimos anos, recuando no caminho que o cantor decidiu adoptar em Quinto e Rua da Emenda, discos fortemente marcados por uma convergência musical de sonoridades portuguesas, brasileiras e cabo-verdianas. A relação que antes estabelecia sobretudo com várias músicas populares locais dá agora lugar a uma música popular com um travo mais universal. “É o resultado de tudo, dos discos que ouvimos, das músicas que fazemos, de todas as influências que temos, das pessoas que estão ao nosso lado”, justifica. “Mas nunca penso muito nessas coisas. Estou focado a cantar e a tocar.”

Essa sonoridade de geografia mais difusa, estimulada pela presença pronunciada de uma linhagem clássica pop/rock, a par de uma investida por serpenteares jazzísticos, rapidamente se explica no convite dirigido a um tridente de produtores composto por Nuno Rafael (director musical de Sérgio Godinho, um dos artífices do álbum dos Humanos), Filipe Melo (pianista de jazz, mas com créditos de orquestração em discos de gente como Legendary Tigerman, Deolinda ou Diabo na Cruz) e João Moreira (trompetista de jazz, há muito companheiro de estrada de Zambujo). Se Moreira não é estranho a este universo, Rafael e Melo encaixaram na ideia que o cantor tinha para o novo disco quando os viu em palco, na pele de maestros do espectáculo Deixem o Pimba em Paz.

A partir daí, as discussões sobre o álbum passaram a fazer-se sempre a quatro, numa partilha de referências que passavam por Beach Boys e Beatles (oiça-se Catavento da Sé, Sem palavras ou Não interessa nada para se perceber o quanto Brian Wilson e Paul McCartney por aqui se demoram – se bem que a última poderia ser obra de um rapaz chamado Caetano McCartney), Tom Waits (Retrato no bolso, Se já não me queres ou Arrufo) e Rodrigo Amarante. Amarante, outro endividado para com a figura de Chet Baker, aparece escarrapachado no tema de abertura, Do avesso, nascido da pena de um outro Rodrigo made in Brasil – no caso, de apelido Maranhão. O piano de fantasmagórica melancolia, Zambujo foi buscá-lo ao brilhante Cavalo, em concreto a Fall asleep. “O Cavalo, do Amarante, tinha muitas experiências de som que me inspiraram”, reconhece. “E em relação a esse piano, eu disse que não queria parecido, queria mesmo aquele som.

De Cavalo ao Alentejo

Cavalo é um álbum que faz sentido enquanto referência no momento em que Zambujo se encontrava na linha de partida para a criação do novo registo. Já no lançamento do anterior Rua da Emenda, havia uma canção de rabo de fora a encerrar o disco. Viver de ouvido, música de Zambujo para letra de José Fialho Gouveia, era uma canção distendida, gravada no telefone, voz e guitarra sem polimento algum, com uma hesitação na letra, tema e música ainda a encaixarem-se num tema acabado de nascer. Era o primeiro indício de que queria “começar do princípio”, recuar até esse registo de onde tudo parte (voz e guitarra) e construir a partir daí com recurso a peças diferentes.

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No novo disco há uma sonoridade de geografia mais difusa, estimulada pela presença pronunciada de uma linhagem clássica pop/rock, a par de uma investida por serpenteares jazzísticos

Também um disco de Nana Caymmi e César Camargo Mariano, voz e piano, que lhe haviam oferecido no Brasil, seria usado como pista adicional para esse caminho – foi daí que saiu Fruta boa, tema de Milton Nascimento, uma das versões que encontraram espaço em Do Avesso. Nessa construção com novos elementos, de início Zambujo nem sequer equacionou a introdução de uma orquestra, mas a vocação natural de Filipe Melo para esse tipo de solução foi-se infiltrando aos poucos e, quando o cantor deu por isso, já não era capaz de imaginar as canções sem os apontamentos – por vezes a remeter para um mundo em que Sinatra é rei, outra vezes com o trono alargado para lá caberem os quatro Beatles – interpretados pela Sinfonietta de Lisboa.

Os arranjos orquestrais remetem também para um universo cinematográfico caro a Zambujo. Aliás, é por causa desse encontro que chegamos a Amapola, tema que deliciava há muitos anos o músico, desde que o descobrira orquestrado por Ennio Morricone numa cena de Era Uma Vez a América, em que Noodles regressa à infância e espia Deborah enquanto ela ensaia uns passos de ballet. “Para mim, os dois momentos musicais mais bonitos da história do cinema”, justifica, “são a Paloma cantada pelo Caetano no Fala com Ela, e este do Era Uma Vez a América. Sempre achei esta música maravilhosa, mas não tinha vontade de cantá-la porque julgava que era instrumental.” Foi graças a um concerto dos Três Tenores que foi surpreendido por uma letra para o tema, em castelhano. Para não ficar linguisticamente desirmanado, Zambujo emparelhou-o com Madera de deriva, tema colhido junto do uruguaio Jorge Drexler.

São exemplos de um disco que se vai transformando em termos sonoros, abandonando, aos poucos, o tom mais pop/rock para se entregar a temas de perfil mais clássico, mas em que Zambujo sai sempre coroado. As composições (escolhidas a partir de um lote de 30) são, regra geral, magníficas e as suas interpretações acompanham essa atmosfera enlevada, sem forçar a voz a voos desnecessários. Em duas ocasiões, temas da lavra de Luísa Sobral e Márcia, Zambujo volta a cantar na pele de uma mulher, algo que acontecera já em Até Pensei que Fosse Minha, o seu álbum dedicado ao cancioneiro de Chico Buarque. Atraído por se ver de visita a um mundo que não é o seu, esse foi um pedido expresso da sua parte – o de querer imaginar-se noutro corpo e noutra vida.

No primeiro desses temas, Se já não me queres, ouvimos às tantas a guitarra portuguesa furar o instrumental para nos lembrar que está por lá, embora meio escondida. Em todo o álbum, Bernardo Couto leva o instrumento para um papel quase sempre rítmico, recusando-se ares de protagonista. No segundo, o espantoso Não interessa nada – muito bem ligado a Arrufo, de Pedro da Silva Martins, descobrimos em Márcia uma escrita com o atrevimento e o humor que Maria do Rosário Pedreira ajudou a estabelecer como imagem de marca do autor – a poetisa sente-se, por isso, como uma ausência presente em Do Avesso. “Às vezes isso até pode tramar”, confessa Zambujo, “porque as pessoas acabam por imaginar-nos sempre a fazer a mesma coisa, o que não me interessa muito. Há muitas músicas que ficaram de fora porque percebo mesmo que tentaram armar-se em engraçadinhas e desde o tempo do La Féria sei que graça com graça dá desgraça”, ri-se.

A vantagem é que os autores que povoam o disco quase todos conhecem bem Zambujo. E só assim é possível encerrar com um certeiro tema escrito por João Monge e musicado pelo cantor, Moda antiga, versejador das angústias e dos conflitos de quem cresceu no Alentejo e se pergunta o tempo todo quanto de si pertence à província e à metrópole, quanto de si é campo e quanto é cidade, quanto da sua nova vida equivale a traição. E a dúvida, a incerteza e o conflito, como bem se sabe, é um dos melhores lugares para se habitar.

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