O último disco de António Zambujo como o conhecemos

Rua da Emenda é um disco fácil, solto, que navega sem preocupações pela sonoridade que António Zambujo foi construindo nos últimos dez anos. É também um disco de despedida. A partir daqui, será voltar ao início e fazer tudo de novo.

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O Brasil continua escancarado na voz de António Zambujo, mas a paixão estende-se a toda a América Latina via Chavela Vargas e Gabriel García Márquez

Não está propriamente escondida, mas está enfiada mesmo no fim de Rua da Emenda. Logo a seguir à surpresa de ouvirmos António Zambujo pegar em La Chanson de Prévert e enganar-nos os ouvidos, fazendo-nos crer que Serge Gainsbourg terá um dia não apenas sonhado com Kingston e os ritmos cálidos e indolentes da Jamaica, mas também com os maneirismos floreados da guitarra portuguesa e a cadência vivaça que o fado lisboeta pode, por vezes, tomar. Viver de ouvido, letra do jornalista José Fialho Gouveia sobre música de Alice Sepúlveda, uma delicadeza acústica, feita de uma simplicidade em que se alojam laivos de standard de jazz, da nova chanson de Camille e dos pós-sambas de Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante, foi gravada com um telemóvel e soa a uma pequena canção de despedida, uma forma de o álbum deslizar discretamente até ao silêncio. Só que é muito mais do que isso.

Ao fim de seis álbuns (sobretudo desde Por Meu Cante, de 2004), António Zambujo declara o fim oficial de um percurso em que foi acrescentando camadas de instrumentos a uma base de voz e guitarra. Rua da Emenda é, sem rodeios, considerado um disco de fim de ciclo. “Poderia ter terminado no [anterior] Quinto”, admite o cantor, “mas achámos que fazia sentido acrescentar mais alguma coisa”. Zambujo assume o plural, implica nas suas palavras Ricardo Cruz, seu contrabaixista e director musical, com quem tem semeado este caminho que veio do fado mas não pôde por lá demorar-se porque tinha outros compromissos. “A partir daqui terei de começar de novo, ainda não sei em que direcção, mas há uma necessidade minha de procurar algo diferente, de não me acomodar.” Rua da Emenda soa a uma extensão de Quinto, pouco mexendo numa equipa de colaboradores e numa sonoridade que Zambujo demorou dez anos a sedimentar. “É como se estivesse a fazer uma viagem de avião e entrasse na velocidade de cruzeiro, que é a parte chata”, descreve. “Quando está tudo assimilado, tudo feito, tudo certo, as coisas deixam de ser estimulantes para quem cria.” Intuindo a passagem para esse estado de descanso e assustando-se com a monotonia que daí poderia advir, o músico quis apenas passar mais uma demão, deixar tudo bonitinho e perfeito para logo a seguir começar a desmontar a sua obra.

É por isso que Viver de ouvido tem tanto peso. Registado de forma pouco definitiva, deixa ouvir António Zambujo no seu habitual e desprotegido ambiente de criação, de novo apenas com voz e viola, tentando ajeitar a melodia de encontro aos acordes. Para recomeçar, percebe-se, há que regressar àquilo que é essencial. E ao pôr na boca do músico as palavras “Eu só sei viver de ouvido (…)/ o que sei foi aprendido/ pelas artes de escutar” está, ao mesmo tempo, a saudar toda a aprendizagem de Zambujo quando aterrou no Senhor Vinho, migrado do Alentejo. “Quando cheguei a Lisboa, escutar pessoas como o Mário Rainho, o José Luís Gordo e o Paulo Parreira, que tocou guitarra portuguesa comigo, a falarem sobre coisas do fado, conhecer os fados tradicionais e as histórias dos autores... foi daqueles períodos em que uma pessoa se transforma em esponja e absorve tudo”, recorda. Essa experiência, empírica, sorvida aos goles, moldou a sua visão da música através de relatos oficiais e oficiosos dos seus heróis musicais, daqueles que só se contam em privado e dos quais se apaga o rasto. Zambujo estende ainda esse olhar indiscreto e informativo a filmes como Let’s Get Lost. “Sou um grande fã do Chet Baker e esse documentário também me leva a perceber um pouco como ele era. Acaba por não ter grande influência na opinião formada em relação ao músico, mas permite perceber um bocadinho a pessoa. Tal como o filme sobre o Vinicius de Moraes ou as biografias em livro do Miles Davis e da Amália…”

 

O núcleo dura

Enquanto fim de ciclo, Rua da Emenda não inventa nenhum grande manifesto em torno dessa ideia. É, aliás, um disco fácil, leve, pouco acidentado, como se nem tivesse sido necessário pensá-lo ou sequer compô-lo. De igual maneira, dilui também as influências brasileiras e africanas, passa para os bastidores a música tradicional alentejana, embora tudo vagueie por aqui, cosido melhor do que nunca, sem sobressaltos, sem necessidade de se fazer notar. António, claro, continua a cantar com aquela bela fragilidade que conhecemos de Caetano, tão presente na primeira vez que integra Samuel Úria no seu cancioneiro (Valsa do vai não vás), bonita valsa dengosa, quanto numa Canção de Brazzaville com passaporte africano (letra de José Eduardo Agualusa, música de Jon Luz e Ricardo Cruz) mas que parece sintonizada com a ginga de Livros.

A colaboração intermitente de Jon Luz é, na verdade, uma das poucas diferenças na sonoridade de Rua da Emenda relativamente a Quinto. Em vez do seu cavaquinho, capaz de danças suadas e das mais espantosas viagens astrais, temos agora a constância da trompete de João Moreira a fechar o quinteto base, reforçando uma toada mais clássica. De resto, fez-se como Quinto, gravado ao vivo, para que as canções não nasçam logo presas pelos rigores do estúdio. Mas beneficia do tal núcleo duro que ajudou a construir este ciclo e que passa não só pelo grupo de músicos que acompanha Zambujo, mas também pelo conjunto de autores (de letra e de música) de que se rodeia e que, para a voz do cantor alentejano, parece escrever num tom totalmente diferente, criando uma galeria de micronarrativas quotidianas. João Monge e Maria do Rosário Pedreira, por exemplo, esticam a corda. Monge escreve uma história de ciumeira terminada com “Se tens dói-dói faz aquilo que eu fiz/ Morre por ela e trata com um drunfo” ou uma outra sobre o adultério de um tipo que chega tarde e com marcas de batom no colarinho, percebendo-se no desfecho que podemos estar a assistir a um episódio para adultos dos Flinstones (título da canção). “A Rosário Pedreira”, diverte-se Zambujo lembrando os dois poemas com um humor permeável a vapores carnais, “gosta de testar os meus limites. Cada vez que escreve alguma coisa para mim, ou escreve uma coisa mais atrevida ou mais sem sentido. Gosto desse tipo de desafios”.

 

América Latina como Beja

De forma mais escancarada, a música brasileira entra na Rua da Emenda pela pena de Noel Rosa e de Rodrigo Maranhão com Pedro Luís. Apesar de ter actuado, assim como Carminho, nos importantes Prémios da Música Brasileira e de estar escalado para um concerto de tributo a Chico Buarque ao lado de nomes de vulto da música popular brasileira (Mônica Salmaso, Lenine e Zélia Duncan), António Zambujo torce o nariz às trocas de galhardetes afectuosos entre os dois países. “Odeio aquela lamechice do ‘país-irmão’. Estamos muito longe e são realidades muito diferentes”, defende. “Mas claro que tenho um carinho especial porque a música deles tem uma grande influência naquilo que faço.” Em primeiríssimo lugar, garante o próprio, por via de João Gilberto. Mas Zambujo prefere alargar essa influência geográfica à América do Sul. “A minha paixão pela América Latina não vem só do Brasil. Vem do João Gilberto, da Chavela Vargas e do Gabriel García Márquez. São os três que me fazem sonhar com aquela região e me fazem ter vontade de conhecê-la como conheço Beja. Sei que vai ser difícil, mas é um objectivo de vida.”

Tal como Rua da Emenda abre o espaço linguístico ao francês de Gainsbourg, fá-lo igualmente ao castelhano através de Zamba del olvido – “em inglês decididamente não, com excepção de alguma coisa do Tom Waits”, apressa-se a clarificar –, tema do uruguaio Jorge Drexler, ou através de uma leve sugestão latina nas guitarras de Pedro da Silva Martins e Luís José Martins, dos Deolinda, no tema Despassarado. Pedro, assim como Miguel Araújo, são os dois autores com quem Zambujo diz ter a certeza de que vai trabalhar, se não para sempre, pelo menos durante muito tempo. Araújo contribui para o fim de ciclo de Zambujo com Pica do 7, uma canção de amor em cima dos carris de um eléctrico, protagonizada por uma bela moça de coração em espavento sempre que surge um “pica” [cobrador]. Para que a canção tivesse um enxerto de realidade, foi convocada a Banda de Música dos Empregados da CARRIS, ajudando no tom meio desconjuntado e trepidante desta paixão.

A abrir o disco, a Marcha do Manuel Maria, fado tradicional criado por Manuel Maria Rodrigues numa noite de despique de canto ao desafio com Alfredo Marceneiro. O posicionamento, como se imagina, é tudo menos acidental. Zambujo parte do único fado tradicional, atravessa os seus autores próximos, e despede-se num tema premonitório do que virá. Mas aquilo que virá, na verdade, nem ele sabe. “Não sei por onde vou, sei que não vou por aí”, remata, entre risos. “Terminar a entrevista a citar o José Régio é maravilhoso.”

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