Não matar a escola pública

Harper Lee é claramente favorável a uma escola pública inclusiva, sendo os homens criados iguais, mas tornados desiguais pelo contexto socioeconómico.

Em tempos de muitos pós, a contemporaneidade gera discussões para as quais não existem meta narrativas. A romancista norte-americana Harper Lee (1926-2016) bem pode ser um desses casos. Em duas notícias diferentes, é dito que Mataram a Cotovia é o melhor livro dos últimos 125 anos para os leitores do New York Times (PÚBLICO, 30/12/2021); na outra, é referido que uma escola escocesa decidiu substitui-lo por textos “menos problemáticos” (PÚBLICO, 18/7/2021), sobretudo pela não-concordância com a ideia do “salvador branco”, o advogado Atticus Finch, face ao quase silenciado Thomas Robinson, e pela ocorrência frequente da palavra nigger.

Não entrando nessas questões, se é ou não o melhor e se é ou não uma medida sensata, talvez fosse melhor argumentar que, relativamente à última, toda a decisão de descolonização do currículo, tanto pela reformulação de programas, quanto pela exclusão de determinadas obras de autores, é sempre um assunto em discussão, porque nada pode ser analisado fora do contexto.

Porém, Mataram a Cotovia — ou Por favor, não Matem a Cotovia (a edição que li e da qual são citadas algumas passagens) — é um dos clássicos da literatura mais estudados pelas suas referências à escola e à educação, na assunção daquela “rotina tão familiar de ir à escola, brincar e estudar”. Se bem que haja dois a três capítulos dedicados a essa temática, o resto do texto é intersetado pela relação umbilical de uma comunidade do Sul dos Estados Unidos com a escola, presente na autoridade do diretor e nas formas de ensinar e aprender.

Além da trama literária em torno de uma sociedade racista, sobressai da leitura do romance a educação da década de 1930, em que as ideias de John Dewey (1859-1952) se revelavam notoriamente na escola, mais nos alunos do que nos professores, já que aceitar que “a criança é o ponto de partida, o centro e o fim” seria algo de difícil compreensão a partir de um sistema totalmente centrado no “assunto-matéria”, como o mesmo escreveu em A Escola e a Sociedade. A Criança e o Currículo (1902), e como se lê numa interlocução do romance: “Jack! Quando uma criança te pergunta algo, por amor de Deus, responde-lhe. Agora não faças disso uma encenação.”

Não sendo possível analisar em poucas palavras o quão significativo é para a teoria da educação o romance de Harper Lee, referir-me-ei a três ideias principais:

A primeira é sobre a importância da leitura no processo educacional. “Agora vai dizer ao teu pai para ele não te ensinar mais. O melhor é começar a ler com uma mente virgem.” Esta sentença da professora Miss Caroline para com a aluna do 1.º ano, Jean Louise ou Miss Scout, colocava em causa o trabalho do pai, que tornara normal a leitura de jornais e de revistas de futebol em casa, bem como o da empregada, a Calpurnia, que a ensinara a ler através da Bíblia.

E quem diz ler, diz também escrever (“Ela dava-me uma tarefa de escrita que consistia em sarrabiscar o alfabeto no topo de uma tabuinha para eu depois copiar um capítulo da Bíblia por baixo.”) Ainda sobre a leitura, e perante a resistência da filha em ir para a escola (“Mas se continuar a ir para a escola, nunca mais vamos poder ler”), o pai estabeleceu com ela o seguinte compromisso: “Se aceitares a necessidade de ir à escola, continuamos a ler todas as noites, como sempre lemos. De acordo?”

Outra ideia marcante é o conhecimento do contexto e o modo como ele influencia o estudo. Quando a professora troça do aluno que nada tem, que não se esquecera do almoço por vontade própria, mas pela sua pobreza, não tendo também dinheiro para o comprar, ou lenha para devolver o empréstimo que a professora lhe faria, diz-lhe a aluna: “'Tá a envergonhá-lo, Miss Caroline. O Walter não tem uma moeda de 25 cêntimos para lhe dar e além disso a senhora não precisa de lenha para o fogão.”

Este aluno, numa conversa sobre colheitas com o pai de Jean Louise, que o levara a casa para almoçar, expõe a razão para a sua repetência escolar: “O motivo por que não consigo passar do primeiro ano, Mr. Finch, é que todas as Primaveras tenho qu'ajudar o papá na ceifa, mas agora já há outro lá em casa que tem tamanho suficiente para trabalhar no campo.” Outros alunos, como os Ewells, seguiam-lhe os passos do abandono, dizendo a aluna à professora: “A escola está cheia deles. Vêm no primeiro dia de todos os anos e depois não vêm mais,” corroborada pelo aluno que estava a faltar: “Há três anos qu'eu venho p'ra cá no primeiro dia d'aulas do primeiro ano – disse ele expansivamente. – C'um bocadinho de sorte vão ver qu'este ano eles inté me deixam passar p'ró segundo.”

Também para os filhos da família Walter o contexto era bastante punitivo, sendo a escola a solução para enfrentar esse problema: “Não, todos temos d'aprender, ninguém nasce ensinado. Aquele Walter é bem esperto, reprova é muitas vezes, p'rque tem de ficar em casa a ajudar o pai. Não há nada de errado com ele. Nã, Jem. Acho que só há um tipo de pessoas. Pessoas.”

A sociedade descrita no romance é profundamente exclusiva, com diferenças abismais entre pessoas de diferentes raças e de contextos sociais bem distintos, em que o preconceito é algo que corrói a confiança entre as pessoas, como se um fosso tivesse sido cavado para separar os bons dos maus, aqueles maus a quem a justiça sempre punia, estivessem ou não inocentes.

Seria, aliás, a sociedade do inferno, chorada em cada dia da vida das pessoas: “Chorar pelo inferno absoluto que umas pessoas fazem passar outras… sem dó nem piedade. Chorar pelo inferno que os brancos fazem passar as pessoas de cor, sem sequer pararem para pensar que elas, afinal de contas, também são pessoas.”

Ou seja, o pressuposto de que os outros são o inferno, na linguagem Sartriana, aplicar-se-ia “à raça humana e não a uma raça específica”, pois em todo o lado, como “nos tribunais, quando a palavra de um branco vai contra a palavra de um homem negro, a vitória pertence sempre ao branco. Não é bonito, mas a vida é mesmo assim.”

Por essa mesma razão, Harper Lee é claramente favorável a uma escola pública inclusiva, sendo os homens criados iguais, mas tornados desiguais pelo contexto socioeconómico, não sendo aceitável dizer, “com seriedade que as crianças que ficam para trás sofrem de graves complexos de inferioridade”.

Todavia, a realidade defendida pelos pedagogos tradicionais robustece a diferença, assim enunciada: “Uns são mais espertos do que outros, há pessoas que têm mais oportunidades porque nasceram com elas, alguns homens ganham mais dinheiro do que outros, algumas senhoras fazem melhores bolos do que outras… algumas pessoas nascem mais dotadas do que a maioria das restantes.”

A terceira ideia, surgida no final do romance, ainda que esta já tenha sido apontada, é a da educação para a cidadania, na linha da educação progressista de John Dewey, defensor de uma educação problematizante a partir da exploração do contexto, numa perspetiva pragmática e experiencial.

Jean Louise, a criança narradora, diz que “uma vez por semana tínhamos uma actividade denominada de Actualidades. Cada criança tinha de recortar um artigo de jornal, assimilar o seu conteúdo e revelá-lo ao resto da turma”.

Tal atitude cidadã, inscrita nos problemas da sociedade, pretenderia focar-se numa convivência plural e democrática, através do relacionamento interpessoal e de processos vivenciais, como é defendido na atual Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Contrariamente, e qualquer similitude com os tempos atuais será mera coincidência, como só dizer-se, “este tipo de coisas não funcionava bem em Maycomb. Em primeiro lugar, havia poucas crianças, nos meios rurais, com acesso aos jornais, por isso o fardo das Actualidades acabava por ser sempre suportado pelas crianças da cidade… a maioria das crianças não sabia o que era uma Actualidade”.

Por mais propostas e discussões sobre o presente e os futuros da educação, e por mais práticas escolares inovadoras, o problema principal ainda é o preconceito relativamente às pessoas e à sua educação, como se esta não tivesse de ser pública, equitativa e inclusiva. E a este respeito, retirando-se o lado mais religioso, convém lembrar “que é pecado matar uma cotovia”.


O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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