Alimentação na Cidade I
Comprar é um voto. Sabemos usá-lo?
“Temos de questionar muito os nossos alimentos”, diz um jovem pai de família. “Precisamos recuperar o domínio da alimentação”, defende o director-geral da FAO. E como é que isso se faz? Sazonal, local, bio, barato, sem plástico, sem glúten, sustentável — o que é que procuramos, afinal? Hoje, Dia Mundial da Terra, iniciamos uma série de cinco reportagens à procura de respostas sobre a alimentação nas cidades.
Em 2050, seremos 9,5 mil milhões, a maior parte a viver em cidades (66%, segundo previsões das Nações Unidas, contra 54% actualmente e 30% em 1950) e, em muitos casos, em megacidades, com 10 ou 20 milhões de pessoas. Como vamos alimentar uma população mundial em crescimento? Os cálculos da ONU indicam que será preciso aumentar a produção em 60%.
Mas como iremos produzir alimentos suficientes se a área agrícola tende a diminuir, engolida pelo avanço urbano, e se muitos dos solos produtivos correm o risco de ficar esgotados por uma agricultura intensiva?
A China é um dos países mais atentos ao problema. Para alimentar uma população de 1,4 mil milhões, com uma dieta que tem vindo a aproximar-se da ocidental, com um aumento do consumo de proteínas animais (as vendas de carne de vaca aumentaram 19.000% numa década, indica um artigo da Bloomberg), o Governo chinês está a comprar terras agrícolas noutras zonas do mundo, nomeadamente em África.
Até porque, ainda de acordo com a FAO, entre 1997 e 2008, a China perdeu 6,2% da sua terra cultivável para a construção (uma evolução que tentou, entretanto, travar) e cerca de 20% da que lhe resta está altamente contaminada pelo uso excessivo de químicos.
Grande parte da produção de cereais e grãos no planeta destina-se à alimentação animal, sendo a pecuária uma das principais causas de emissão de gases com efeito de estufa. Além disso, a produção de 1kg de carne de vaca consome de 1500 litros de água — e dos 263 milhões de toneladas de carne produzidas por ano no mundo, cerca de 20% é desperdiçada.
A estes números soma-se outro alerta, deixado pelo World Wildlife Fund (WWF): 70% da água doce do planeta é usada para a irrigação de campos agrícolas e a agricultura é a maior causa de desflorestação. Ou seja, o sistema alimentar que temos hoje é “responsável por 60% da perda global de biodiversidade”.
O mesmo alerta chegou recentemente a Portugal pela voz do director-geral da FAO (Food and Agriculture Organization, das Nações Unidas), o brasileiro José Graziano da Silva, que veio dizer que um dos grandes problemas do sistema alimentar que criámos nas últimas décadas é “a concentração da produção em quatro ou cinco produtos: arroz, milho, soja, batata são 80% do que comemos no mundo”. Não pode ser assim, diz. “Temos 36 mil plantas e animais que fornecem alimentação. Não podemos estar concentrados em cinco.” E conclui: “Hoje quem alimenta o mundo não são os agricultores, são as cadeias da agro-indústria. Temos de mudar isso.”
E conseguiremos fazê-lo? Todos somos consumidores. Teoricamente, isso dá-nos algum poder. Mas sabemos usá-lo?
Quisemos perceber como é que nos alimentamos hoje numa cidade. Essa comida que todos os dias entra, por diversas vias, e se espalha, por mercados, mercearias, super e híper mercados, restaurantes e que, por fim, chega a cada uma das nossas casas, sabemos de onde vem, quem a produz? Que relação temos com o que comemos?
“Nós, consumidores, temos cada vez menos controlo sobre o sistema alimentar e os produtos que estão na nossa mesa. É isso que queremos?”, pergunta Cecília Delgado, urbanista e investigadora da Universidade Nova de Lisboa. Conversamos com Cecília em frente a uma mesa cheia de frutas e legumes que comprámos num supermercado local — decidimos começar por aí, uma cesta de compras básica semelhante à que cada um de nós leva para casa.
Temos sobre a mesa um pouco de tudo, vindo de muitos sítios diferentes do mundo: cebolas da Holanda e do Peru