Levar cinzas humanas para a Lua? Missão privada queria fazê-lo

Missões privadas ganham ímpeto para construir e redesenhar a superfície da Lua. Empresário norte-americano quer pôr, com poeiras lunares, um cruz cristã no satélite natural da Terra.

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A presença humana na Lua já data dos anos 1960 e 1970, com as viagens de astronautas como Harrison Schmitt (aqui em 1972) NASA
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Os planos pouco convencionais para explorar a Lua, com fundos privados, incluem desde um local para depositar cinzas humanas até contentores de bebidas desportivas – ideias que ganharam força nos últimos anos, mediante o esforço da NASA para tornar o satélite natural da Terra mais acessível.

As preocupações com as falhas na supervisão dos Estados Unidos e as questões legais sobre a exploração da Lua sobressaem agora. Nos próximos anos, espera-se que sondas construídas por empresas privadas e outros países com potencial espacial se juntem à bandeira norte-americana e a outros resquícios dos programas espaciais que viajaram até à Lua. Mas há outras iniciativas que podem incluir o recurso à Lua como local para cápsulas de restos mortais humanos, publicidade a bebidas desportivas e até uma cruz cristã de dois andares feita com as poeiras da própria da Lua.

“Ainda estamos apenas no início da exploração da Lua e precisamos de ter cuidado para não a contaminar – não apenas com contaminação biológica e química, mas também com lixo”, alerta Leslie Tennen, advogada que se dedica sobretudo à lei internacional do espaço.

Entre as cargas a bordo de uma recente missão privada à Lua da empresa norte-americana Astrobotic – que acabou por não conseguir alcançar a superfície da Lua – estavam dezenas de cápsulas de cinzas humanas e uma lata da bebida desportiva japonesa Pocari Sweat. O intuito destas cargas não é claro.

A lei norte-americana permite que estes objectos – e qualquer outra coisa – possam ir para a Lua, desde que o Departamento Federal de Aviação dos Estados Unidos e outras agências governamentais se certifiquem de que o lançamento destas cargas num foguetão não “colocam em risco a saúde pública e a segurança (…), a segurança nacional dos Estados Unidos (…) ou os compromissos internacionais dos Estados Unidos”.

A atenção para este tema será ainda maior à medida que a agência espacial norte-americana NASA aumentar o contributo das empresas privadas nas suas missões, de forma a reduzir o custo das viagens à Lua. Actualmente, não existem leis ou regulamentos norte-americanos que definam o que é aceitável colocar na superfície do satélite terrestre. A NASA prevê construir bases lunares a médio prazo e fomentar um mercado competitivo para o espaço.

Cruz cristã na Lua

Alguns advogados com experiência em direito espacial temem que a ausência de regulação coloque as empresas norte-americanas em disputa com outros países que operam na superfície lunar ou, até, que desencadeie embates internacionais sobre os empreendimentos privados que podem ser considerados apropriação de terras ou potenciais reivindicações de soberania. A falta de directrizes levanta várias possibilidades.

Justin Park, empresário radicado na capital norte-americana Washington, quer construir uma cruz cristã na Lua, tão grande quanto um prédio de dois andares e feita de poeiras lunares endurecidas – uma construção estimada em mil milhões de dólares norte-americanos (cerca de 929 mil milhões de euros) que já discutiu com legisladores dos Estados Unidos e organizações católicas.

“Ninguém é dono da Lua”, diz Justin Park. A regulação excessivamente restritiva para as actividades lunares, refere, “destruiria uma indústria antes de ela levantar voo”.

A empresa Celestis, que lança restos humanos cremados para o espaço e organizou as cápsulas com cinzas no módulo lunar Peregrino, também da Astrobotic, recebeu críticas enfurecidas da nação navajo, que considera a Lua sagrada e considera o serviço fúnebre desta empresa um sacrilégio.

Charles Schafer, director-executivo da empresa, afirma que estes funerais no espaço são inevitáveis num período em que há mais humanos a chegar ao cosmos. “Não tomamos decisões sobre as missões espaciais com base em testes religiosos”, diz. “Tenho uma foto de 20 mil monges budistas a comemorar o nosso lançamento. Então, qual é a religião que manda?”

Já estamos atrasados

Funcionários da NASA responsáveis pelo programa que ajudou a financiar a missão da Astrobotic defendem que não têm controlo sobre aquilo que as empresas levam nos seus módulos de pouso e acrescentam que poderão ser criados padrões de cargas no futuro.

“Isto evoluirá bastante com o tempo”, antecipa Chris Culbert, responsável pelo programa de cargas lunares comerciais da NASA. “O primeiro passo é uma alunagem bem-sucedida. É com isso que mais os preocupamos nestas etapas iniciais.”

Alguns funcionários da NASA e de agências espaciais de outros países consideram, especificamente, que as cinzas humanas e as bebidas desportivas são obstruções e lixo que abririam um precedente negativo, avançam duas autoridades norte-americanas que pediram para não serem identificadas.

Com outro módulo lunar privado norte-americano agendado para o próximo mês, a falta de regulamentação pode colocar os Estados Unidos em conflito com o Tratado do Espaço Exterior de 1967, ratificado pela esmagadora maioria dos países. Este acordo explicita que os países devem autorizar e supervisionar as actividades espaciais de entidades não-governamentais.

Tudo isto aumenta os riscos para a indústria espacial, para o Governo de Joe Biden e para os legisladores que, durante meses, se digladiaram sobre como as novas actividades comerciais no espaço devem ser reguladas – e com grupos industriais a resistirem ao que chamam de sufoco da inovação.

Até à data, referem os advogados ouvidos pela agência Reuters, poucos países adoptaram regras para o comportamento lunar e as que existem no direito internacional continuam a ser pouco claras. Parte destes advogados considera que foi feito muito pouco para definir as práticas na Lua.

“Já estamos atrasados e precisamos urgentemente de começar a discutir a Lua a nível internacional”, defende Mejía-Kaiser, conselheira do Instituto Internacional do Direito Espacial.

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