Reacções ao IPCC: o filme dos Óscares, os “contos de fadas” e a dura realidade

As reacções ao relatório do IPCC exigem uma rápida e acção decisiva em relação aos combustíveis fósseis: “A equação é bastante directa: conhecemos os problemas e as soluções, resta a vontade política”

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As alterações climáticas estão a produzir fenómenos climáticos extremos como a seca em vários países THOMAS PETER/Reuters

O alerta foi, mais uma vez, dado. “A humanidade caminha em gelo fino e esse gelo está a derreter rapidamente”, disse nesta segunda-feira o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, dando o tom das reacções que foram surgindo ao longo do dia, depois da apresentação dos resultados do Relatório Síntese do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), divulgado na Suíça.

“O rácio do aumento de temperatura no último meio século é o maior em 2000 anos”, disse Guterres num vídeo previamente gravado, que foi mostrado durante a sessão de apresentação do relatório. “As concentrações de dióxido de carbono são as maiores em pelo menos dois milhões de anos. A bomba-relógio do clima está em contagem decrescente.”

O relatório sublinha mais uma vez a necessidade de se evitar um aumento da temperatura média da Terra acima dos 1,5 graus Celsius em relação à situação pré-industrial. Só assim é que é possível evitar os efeitos mais nefastos das alterações climáticas. Para isso, urge o corte gradual das emissões de dióxido de carbono, devido ao uso dos combustíveis fósseis, que colocaram a humanidade numa situação preocupante.

O mundo "necessita de acção climática em todas as frentes – tudo, em todos os lugares, ao mesmo tempo", disse o secretário-geral das ONU numa referência ao filme que venceu os Óscares, Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo.

Guterres pediu ainda que a “neutralidade de carbono seja uma realidade em 2050”, com os países desenvolvidos a atingirem essa neutralidade em 2040 e as economias emergentes a seguirem o mesmo passo uma década depois. “Cada país tem que fazer parte da solução. Exigir que os outros tomem a iniciativa primeiro vai somente resultar que a humanidade chega no fim”, disse.

Já John Kerry, enviado climático dos Estados Unidos, apontou para as soluções de que se fala no relatório. “Temos os instrumentos para evitar e reduzir os riscos dos maiores impactos da crise climática, mas temos de tirar partido deste momento e agir agora”, disse, citado pela Reuters.

Em relação ao possível desânimo sobre o tamanho da empreitada que é necessário para inverter a situação climática, Vanessa Nakate, Embaixadora da Boa Vontade para a Unicef, pede para pensarmos nas próximas gerações.

“As conclusões destes relatórios podem fazer-nos sentir desanimados sobre o passo lento da redução das emissões, a transição limitada para as energias renováveis e o aumento, com impacto diário, da crise climática para as crianças”, adiantou a activista ugandesa, citada pela agência noticiosa AP. “Mas aquelas crianças necessitam que leiamos este relatório e tomemos uma acção, e não que percamos a esperança.”

“Com as emissões actuais ainda ao maior nível da história humana, estamos fora do rumo certo, e a janela que temos para limitar o aquecimento acima dos 1,5 graus Celsius está a fechar-se rapidamente”, refere por sua vez Stephanie Roe, uma das responsáveis do Fundo Mundial da Natureza – WWF.

Papel da indústria fóssil

Muitas das reacções à divulgação do novo relatório vêm de geografias que estão a experimentar cada vez mais fenómenos meteorológicos mais extremos no contexto das alterações climáticas. “Se não agirmos com rapidez para lidar com a fonte desta crise, as perdas e danos que o meu povo acabou de viver com os ciclones Judy e Kevin irão continuar a ocorrer com uma força e com um custo ainda maiores”, disse Raplph Regenvanu, ministro dos negócios estrangeiros de Vanuatu, citado pela Reuters.

Este país do oceano Pacífico é formado por várias ilhas, e está na linha da frente das alterações climáticas. “O IPCC diz que ficarmos abaixo dos 1,5 graus de temperatura só vai ser possível com uma acção urgente da diminuição gradual do carvão, do petróleo e do gás. Somente isto irá levar-nos a um corte drástico das emissões e uma transição justa para uma energia limpa e acessível para todos.”

Além disso, em muitos casos os desastres climáticos acabam por ocorrer em países que tiveram pouca responsabilidade no aumento do dióxido de carbono na atmosfera. “Os países em desenvolvimento são os mais vulneráveis às alterações climáticas, apesar de a nível histórico nós termos sido quem menos contribuiu para esta crise”, apontou por sua vez Firhad Hakim, presidente da Câmara de Calcutá, na Índia, citado pela Reuters, que também pediu “uma acção rápida e imediata para pôr um fim ao uso de combustíveis fósseis”.

Kristina Dahl, cientista climática principal da Union of Concerned Scientists, uma organização sem fins lucrativos dos Estados Unidos que “luta por um mundo mais seguro e mais saudável”, aproveitou para recordar o papel da indústria fóssil na lenta evolução da resposta climática global.

“Isto deve-se em grande parte à profunda oposição da indústria de combustíveis fósseis à acção climática a todos os níveis e ao acesso sem restrições que tem às autoridades eleitas”, diz a especialista, citada pela Reuters. “Como resultado, limitar o aumento de temperatura a 1,5 graus ou menos é, neste momento, extremamente difícil. Mas agora não é altura de desistirmos – nem nunca será. Há demasiadas coisas em jogo.”

Também a associação portuguesa Zero - Associação Sistema Terra Sustentável defende uma aceleração na acção climática contra os combustíveis fósseis. “As emissões de combustíveis fósseis ainda podem ser reduzidas para metade até 2030, porque as soluções para o conseguir existem. A natureza ainda pode ser conservada, restaurada, e utilizada de forma sustentável”, lê-se num comunicado da associação ambientalista.

Segundo a associação, o novo relatório do IPCC oferece soluções como o desenvolvimento e a implementação de energias renováveis e a possibilidade de se poupar energia.

“Por mais dramática que seja, a equação é bastante directa: conhecemos os problemas e as soluções, resta a vontade política”, concluiu Francisco Ferreira, presidente da Zero. “Precisamos que a União Europeia, e Portugal em particular, sejam líderes climáticos e contribuam de forma séria e coerente para nos tirar das muitas crises que enfrentamos.”

“Contos de fadas” de carbono

Mas a possibilidade do uso de tecnologias para remover e armazenar dióxido de carbono da atmosfera como parte da solução para a crise climática foi alvo de críticas.

“Sabemos o que é necessário acontecer, mas as ideias sobre captura e o armazenamento de carbono são uma enorme distracção”, disse Lili Fuhr, do Centro para a Lei Ambiental Internacional, que esteve na sessão de aprovação do novo relatório do IPCC, citada pela BBC News. “Mas acho que os proponentes destas tecnologias vão dizer que este relatório é uma chamada importante para o investimento na remoção de carbono.”

Hemantha Withanage, presidente da organização não-governamental Amigos da Terra Internacional, defende que estas tecnologias são uma ilusão. “No meu país, no Sri Lanka, os impactos das alterações climáticos estão a ser sentidos agora. Não temos tempo para ir atrás de contos de fadas, como é o caso das tecnologias de remoção de carbono”, referiu num comunicado daquela instituição.

“As provas do IPCC são claras: as alterações climáticas estão a matar pessoas, a natureza e o planeta”, acrescentou. “As respostas são óbvias: uma eliminação rápida e justa dos combustíveis fósseis, e o financiamento para uma transição justa. A fantasia de se ultrapassar limites seguros [de emissões de carbono] e a aposta em soluções tecnológicas não é certamente a cura para o problema.”

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