Seca histórica nos rios europeus ameaça paralisar o comércio

O rio Reno deverá ficar praticamente intransitável, num ponto de paragem importante, impedindo o transporte de diesel e carvão. Previsões apontam para agravamento da situação.

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Vista aérea do neste momento muito seco rio Loire, em França Stephane Mahe/REUTERS
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Vista aérea do neste momento muito seco rio Loire, em França Stephane Mahe/REUTERS
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Navio de transporte de mercadorias atravessa o leito parcialmente seco do Reno em Bingen, na Alemanha Wolfgang Rattay/Reuters

Devido à seca que está a assolar a Europa e a levar ao emagrecimento dos rios, o rio Reno — que é, desde há séculos, um pilar das economias alemã, neerlandesa e suíça — corre o risco de ficar praticamente intransitável num ponto de paragem importante, o que poderá impedir o transporte de cargas relevantes de diesel e carvão. O rio Danúbio também está numa situação precária, o que deverá afectar o comércio de cereais.

Na Europa, o transporte de mercadorias é apenas um dos elementos do comércio fluvial que foram prejudicados pelas alterações climáticas. A crise energética em França piorou porque os rios Ródano e Garona estão demasiado quentes para arrefecer os reactores nucleares. Por outro lado, o rio Pó, em Itália, está demasiado seco para regar campos de arroz e ter amêijoas.

Se as interrupções no transporte fluvial de mercadorias já são um desafio em tempos prósperos, a Europa está neste momento à beira da recessão, uma vez que a invasão da Ucrânia está a levar ao aumento da inflação — o que, por sua vez, está a interferir com o abastecimento de alimentos e energia. A situação actual — que ocorre apenas quatro anos após uma interrupção histórica do transporte marítimo no rio Reno — aumenta a urgência de a União Europeia (UE) encetar esforços para tornar o transporte fluvial mais resiliente. [Aqui encontram-se as imagens espaciais que mostram as diferenças no rio Reno entre Agosto de 2021 e Agosto de 2022.]

De acordo com cálculos baseados em dados do Eurostat, a organização de estatísticas da Comissão Europeia, os rios e canais do continente europeu, que anualmente permitem o transporte de mais de uma tonelada de mercadorias para cada cidadão europeu, contribuem, dessa forma, com cerca de 80 mil milhões de dólares (mais de 78 mil milhões de euros) para a economia da região. Mas as consequências dos rios secos vão mais além.

“Não se trata apenas de navegação comercial. Trata-se de permitir que as pessoas se refresquem quando está quente, trata-se de irrigar os terrenos agrícolas, trata-se de muitas coisas”, diz Cecile Azevard, directora da operadora de água Vias Navegáveis de França. “Os rios fazem parte da nossa herança.”

As más condições ambientais observadas actualmente deverão ter um impacto financeiro maior do que o impacto de cinco mil milhões de euros que os problemas de navegação no rio Reno provocaram em 2018, segundo Albert Jan Swart, economista do ABN AMRO, banco comercial e de investimentos dos Países Baixos. Enquanto esta seca se mantiver, as embarcações de navegação interior terão o seu trabalho “severamente condicionado”, diz, afirmando que também entram na equação “os danos causados na Alemanha pelos preços elevados da electricidade”.

Até veteranos experientes estão chocados com a situação actual. Gunther Jaegers, gerente da Reederei Jaegers, empresa alemã de transportes por vias navegáveis ​​interiores, disse que caiu da cadeira no início deste mês, quando olhou para os custos dos transportes e viu que, num único dia, a taxa associada à circulação de barcaças subira 30%. “Nunca vi isto”, disse. “É uma loucura.”

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A exploração excessiva dos recursos naturais está a sobrecarregar os sistemas fluviais BENJAMIN WESTHOFF/Reuters

Rio pode ficar demasiado seco para as barcaças circularem

Embora a Reederei Jaegers e outras empresas de transporte possam cobrar mais por cada tonelada de mercadorias, elas não podem transportar tantos bens como em condições normais: com a água mais baixa, têm de transportar cargas menores para navegar com segurança. E não há alívio à vista. “Se olhar para as previsões do tempo, é como um deserto”, diz Gunther Jaegers.

No extremo Sul do desfiladeiro do rio Reno — uma área conhecida pelos vinhos Riesling —, os vinhedos escureceram, ao passo que, na cidade alemã de Colónia, um restaurante flutuante encalhou depois de as águas terem recuado.

A profundidade do rio na vila que fica a oeste de Frankfurt, na Alemanha, já chegou a cair para 40 centímetros. A esse nível é praticamente impossível uma barcaça navegar.

O Reno é fundamental para permitir o transporte de mais carvão para as centrais energéticas alemãs, o que é fulcral para ajudar a compensar o impacto do aperto da Rússia no fornecimento de gás. Mas o Governo do chanceler alemão Olaf Scholz teme que os problemas de transporte possam minar os planos de reactivar algumas centrais desactivadas.

A França, normalmente um exportador de energia, não pode ajudar a aliviar a crise energética porque muitos dos reactores nucleares do país (quase metade) encontram-se indisponíveis, estando a ser realizados trabalhos de manutenção. A Noruega também está a preparar-se para limitar as exportações de electricidade, já que o país considera o reabastecimento de reservatórios baixos mais prioritário do que a produção de energia.

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A crise energética em França piorou porque os rios Ródano e Garona estão demasiado quentes para arrefecer os reactores nucleares OLIVIER HOSLET/Lusa

Isto é o resultado de uma tendência longa

As pessoas sentem o impacto das alterações climáticas principalmente através de mudanças nos padrões de abastecimento de água. Enquanto a Europa sofre uma seca histórica, inundações mortais atingiram, este ano, o estado americano do Kentucky e, também, países como África do Sul, Bangladesh e Brasil. A China foi atingida tanto por secas como por inundações.

E o pior é que, em princípio, a situação só vai ficar mais complicada. Os principais sistemas fluviais da Europa são alimentados em parte pelos glaciares dos Alpes, que estão a desaparecer a um ritmo recorde — e podem perder quase 50% do seu volume até 2050.

“Podemos adaptar-nos até um certo ponto, mas, relativamente às alterações climáticas, estaremos sempre um passo atrás”, diz Fred Hattermann, investigador climático no Instituto de Investigação sobre o Impacto Climático, em Potsdam (Alemanha). “As surpresas continuarão a chegar.”

A exploração em excesso dos recursos naturais também está a sobrecarregar os sistemas fluviais. Cerca de 58 milhões de pessoas vivem na região do Reno e a água do rio é usada para não só beber, como também irrigar terrenos e gerar energia. A escassez de água nas bacias hidrográficas da Europa afecta até um quarto do território da região, diz a Agência Europeia do Ambiente.

As condições que secaram os rios europeus são parte de uma tendência longa e não apenas alguns meses maus, segundo Silje Eriksen Holmen, hidrólogo na empresa de tecnologia Volue (Noruega). Neste momento, o solo está tão seco que a maior parte da chuva seria absorvida. Só quando o subsolo estiver reabastecido é que a água começará a fluir para os rios, diz.

Para algumas empresas de transporte de mercadorias, o Reno é insubstituível

O Reno é o eixo central da rede europeia de vias navegáveis ​​interiores. O rio, que está ligado ao Danúbio por um canal, percorre cerca de 1300 quilómetros através das zonas industriais suíças e alemãs, antes de desaguar no mar do Norte, no porto de Roterdão (Países Baixos).

O rio é quase insubstituível para algumas empresas de transporte de mercadorias. A rede ferroviária da Alemanha enfrenta um congestionamento crónico, enquanto a mudança para a estrada também não é simples. São necessários muitos camiões para transportar a mesma carga que uma barcaça de tamanho médio consegue transportar. E a Alemanha encara neste momento uma escassez de até 80 mil camionistas. Essa escassez está a ser agravada pela guerra na Ucrânia, dado que os ucranianos estão a voltar para casa para combater as tropas russas.

À medida que sobem os preços do gás e a Alemanha deixa de contar com as importações russas, empresas alemãs de transporte de mercadorias (ou que usem água para produzir energia) ficam numa situação de aperto. Se os rios se tornarem cada vez mais imprevisíveis, essas empresas perderão uma vantagem competitiva.

No mínimo, terão de manter mais bens em stock. Na pior das hipóteses, poderão ter de mudar a produção para mais perto dos portos marítimos, onde há ampla água para transporte e também terminais de gás natural liquefeito.

“Os rios não se tornarão inúteis para o transporte de mercadorias, mas provavelmente ficarão menos fiáveis ​no futuro”, diz Fred Hattermann.

Empresas adaptam-se (temendo o pior)

Devido aos problemas com o Reno, o grupo industrial ThyssenKrupp montou uma “equipa de crise”, que se reúne diariamente, e está a usar navios com calados mais baixos, para manter abastecida (por enquanto) a sua central em Duisburgo, onde o rio Ruhr desagua no Reno. A BASF encomendou navios personalizados e está a usar uma barcaça de 110 metros, fretada especificamente para transportar gases liquefeitos para a sua fábrica em Ludwigshafen. A gigante dos produtos químicos pretende evitar uma repetição do que aconteceu em 2018, quando a falta de água trouxe consigo um prejuízo de 250 milhões de euros.

O rio está actualmente mais baixo do que estava nesta altura do ano em 2018. E as previsões apontam para mais declínios nos níveis de água.

Devido à seca, a França impôs restrições de água em quase todo o país. Mais de 100 municípios contam agora com água potável fornecida por camiões. Dada a crise energética, o regulador nuclear francês já concedeu uma isenção temporária para cinco centrais despejarem água quente em rios (o que pode violar padrões ambientais).

No vale do Pó, lar de cerca de 30% da produção agrícola italiana, o calor tórrido e as condições excepcionalmente secas prejudicaram a produção de milho e girassol, forçando ainda os produtores de arroz a cortar as plantações, após o rio ter caído para o seu nível mais baixo em 70 anos.

A sul de Veneza, a interrupção do fluxo natural está, de acordo com a associação agrícola Coldiretti, a conduzir à decomposição de algas e a roubar o oxigénio necessário para a sobrevivência de amêijoas e mexilhões.

“Estamos muito preocupados”, diz Alessandro Faccioli, proprietário de uma traineira de pesca na região de Veneto (Itália). “Precisamos de uma intervenção urgente do Governo para salvar a lagoa”, afirma, acrescentando que até agora, neste Verão, cerca de 30% dos moluscos na área foram destruídos. Faccioli diz também que pelo menos 2300 pescadores e trabalhadores locais correm o risco de perder os seus empregos.

Foi declarado estado de emergência em cinco regiões do Norte e Centro de Itália. O país alerta que cerca de um terço da sua produção agrícola, uma das maiores da União Europeia, está ameaçada por secas e infra-estruturas hídricas de qualidade insatisfatória.

No Danúbio, decorrem operações de dragagem de emergência em três países (Bulgária, Roménia e Sérvia). Os pontos mais críticos estão na área de Zimnicea (Roménia), ao longo da fronteira romeno-búlgara, e mais abaixo no rio em Cernavoda (Roménia).

“É a situação mais séria que tivemos nos últimos 20 anos”, diz Gabriel Techera, director de relações com investidores da Transport Trade Services, a maior empresa de transporte fluvial da Roménia.

Emagrecimento dos rios afecta turismo

O turismo também está a sentir os impactos desta situação. No final de Julho, o navio de cruzeiro de 135 metros Adora estava a caminho de Passau (Alemanha), vindo do delta do Danúbio, com mais de 130 passageiros. Com o reduzido nível da água, a viagem teve de ser interrompida e, para chegar ao seu destino, os turistas tiveram de apanhar um voo em Bucareste (Roménia).

“Temos de rezar pela chuva”, diz Rossen Ossenov, chefe de serviços turísticos da empresa de cruzeiros Dunav Tours. “Mas isso é estúpido. Precisamos de alguma previsibilidade.”

As vias navegáveis ​​são uma parte fundamental dos esforços da União Europeia para combater as alterações climáticas. Nos seus planos de transição verde, a Comissão Europeia prevê um aumento de 25% no transporte por vias navegáveis ​​interiores, bem como no transporte marítimo de curta distância, até 2030. O esforço é apoiado pelo programa Horizonte Europa, que está a incentivar, por um lado, o investimento em barcos para navegar em águas rasas e, por outro, em trabalhos de engenharia para tornar as rotas marítimas mais confiáveis.

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Seca no rio Danúbio FEDJA GRULOVIC/Reuters

Num esforço para evitar uma repetição da interrupção de 2018, a Alemanha está a adoptar medidas para manter o Reno aberto, incluindo sistemas de dragagem e alerta precoce. O país também está a considerar opções como reservatórios que podem libertar água para compensar os fluxos reduzidos dos glaciares.

Há um projecto que, entre as cidades alemãs de St. Goar e Budenheim, quer aumentar a profundidade do Reno em 20 centímetros. O projecto só será concluído no início da década de 2030. Nessa altura, pode ser demasiado tarde para muitas empresas que dependem dos rios europeus.

Ines Flores, responsável por uma empresa que organiza passeios de barco numa região que é conhecida como o Grand Canyon francês, teve de encerrar a sua actividade numa das suas duas praias de actuação. “Nunca vi nada assim”, disse. “Não há nada que eu possa fazer. Isto está a acontecer por causa das alterações climáticas. Está a acontecer por causa de todos nós.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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