Medicina de guerra, o que é?

Cada conflito tem a sua história, e a tipologia de feridos também é muito variada consoante o tipo de violência que se encontra em cada local.

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Mãe e criança num campo de refugiados iemenitas às portas da capital, Sanaa EPA/YAHYA ARHAB

Talvez tenha sido pela adrenalina que escolhi o caminho médico que fui traçando. Salvar uma vida? Salvar vidas? Haverá alguma sensação mais inebriante do que olhar para alguém que poderia estar morto, mas não está, graças ao meu trabalho, às minhas mãos, e ao meu conhecimento?... Bom, cada um vê a vida à sua maneira, mas esta parecia-me a mais bonita, até que, o olhar sobre o mundo me levou a fazer perguntas: “Será que alguma vida humana tem menos valor do que as que estão à minha volta? Não? Então faz as malas!”

A minha primeira missão ensinou-me quase tudo o que sei sobre este assunto, as restantes foram só para confirmar que é na persistência, insistência e consistência que se constrói algo que valha a pena, e que fique para sempre. Fui para a linha da frente da guerra na República Democrática do Congo. Previam-se feridos de guerra por tiros, granadas, bombas, e assim foi... E lá está, a minha busca por uma certa adrenalina dizia-me que era neste tipo de vítimas que eu poderia efectivamente fazer a diferença. E foi. Ou também foi. Mas pouco foi.

Passo a explicar. Em 13 missões, perdi a conta aos feridos de guerra que me passaram pelas mãos. Fiz parte de equipas que salvaram muitas destas vidas. Machetes, balas, estilhaços, granadas, bombas, queimados e vítimas de armas químicas. Mas será isto a medicina de guerra? Sim, é, mas pouco. Cada conflito tem a sua história, e a tipologia de feridos também é muito variada consoante o tipo de violência que se encontra em cada local. Mas com ou sem adrenalina, o que a minha experiência em cenário de guerra me foi mostrando é que aquilo, que nós na medicina chamamos de trauma violento, é apenas uma pequena expressão da medicina de guerra.

As consequências indirectas dos tiros e das bombas são muitos mais impactantes do que as directas. Primeiro porque há uma drenagem de recursos humanos qualificados, visto que são estes que mais facilmente conseguem fugir e refugiar-se noutros países. Depois as falhas na logística do funcionamento de um hospital; a falha no abastecimento de água, de electricidade, de oxigénio, de medicamentos, de material, alimentos, etc., mata muito mais do que os tiros e as bombas, mas claro, é o conflito a causa de todos os males.

Num local de guerra, os desafios vão muito além de parar as hemorragias e amputar membros. Há crianças que morrem pela falta de um antibiótico ou antimalárico, há mulheres que morrem no parto pela falta de capacidade de fazer uma cesariana (um estudo dos Médicos Sem Fronteiras, há uns anos, mostra que as cesarianas são mais de 50% das cirurgias que se realizam em locais de guerra), diabéticos por falta de insulina, reaparecimento de doenças erradicadas por falta de vacinação (exemplo da poliomielite, na Síria), uma apendicite não operada que leva à morte, etc.. No fundo as pessoas, de todas as idades morrem por tudo e por nada, quando as estruturas de saúde deixam de funcionar, como consequência do conflito armado.

E depois temos a fome. Parece que estou a fugir ao tema, mas não. A maior causa de fome no planeta são os conflitos armados. Quando nos escandalizamos (e bem!) pelo ataque a hospitais durante uma guerra, esquecemo-nos que matar à fome, sempre foi uma estratégia de guerra, e uma consequência inevitável de todos os conflitos. Por exemplo, no Iémen, a cidade de Hodeidah tem sido o palco das lutas mais ferozes e potencialmente decisivas, porque é o último porto de mar, onde se abastecem todos os que vivem nas áreas controladas pelas forças do norte.

Não é por acaso que o Programa Alimentar Mundial (PAM), prémio Nobel da Paz em 2019, que salvou da fome cerca de 100 milhões de pessoas em cerca de 88 países, faz uma ressalva especial à situação catastrófica do Iémen, do Afeganistão e do Sudão do Sul, três países que eu conheço por dentro e que sofrem terríveis consequências resultantes de conflitos armados invisíveis para o mundo e, como tal, intermináveis.

Há 30 milhões de crianças a viver em situação de refugiadas, mas há mais de 430 milhões de crianças a viver em locais com conflitos armados horrendos. Palavras na entrega do Nobel da Paz ao PAM: “Pelos seus esforços no combate à fome, pela sua contribuição para melhorar as condições de paz em áreas afectadas por conflitos e por actuar como força motriz nos esforços para evitar o uso da fome como arma de guerra e conflito.”

Comecei por falar da adrenalina de salvar uma vida no limite, e acabo em algo tão simples de se fazer que é prevenir que uma criança morra à fome. Mas para quem tem o coração virado para o mundo, é isto a Medicina de Guerra. E se nós, não somos parte da solução, então somos parte do problema.

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