Educação: novos ou velhos desafios?

Reprodução sine die do pensamento único, aprendizagem desligada da Ética e da Deontologia profissional, a favor do ensino uniformizado. Que profissionais são estes que assim se estão a formar? Que contributo dará esta Educação à consolidação da democracia?

Após quarenta anos de ensino e mais seis de investigação revejo os sucessivos debates, a diversidade de escolas de pensamento e de tomadas de posição… e pergunto-me: será que, no fim de contas, as questões de hoje diferem assim tanto das do ponto de partida?

Quando iniciei a profissão a democracia em Portugal tinha meses e discutia-se a fundo a função democrática da Educação. Consagrava-se constitucionalmente o direito à Educação e não se admitia que o Estado não fosse o regulador central nesse processo, embora não dispondo dos meios para ser o provedor único. O Sistema Nacional de Educação teve de socorrer-se das ofertas pública e privada, esta aceite inicialmente com carácter supletivo face às limitações do Estado e devendo por ele ser apoiada em determinadas condições.

Aquela “falha de Estado”, na terminologia da Economia da Educação, iria contribuir para o desenvolvimento de um importante sector de educação privada, especialmente no ensino superior. E veio também a dar origem a um dos mais recorrentes debates sobre Educação no nosso País, o que opõe os ensinos público e privado. Numa sociedade tão desigual como a nossa, só a escola pública, aberta a todos, pode promover generalizadamente o direito de acesso. Esta é uma das certezas que tenho. Bem conheço a argumentação favorável ao apoio do Estado às famílias mais carenciadas por forma a que os seus filhos possam estudar nas escolas privadas, sob o argumento, falacioso, da maior qualidade destas…

Melhor qualidade das escolas privadas, porquê? Se os professores são formados nas mesmas instituições e se nas escolas públicas os critérios de recrutamento se têm até mostrado frequentemente bem mais rigorosos… Se, mesmo na fase mais marcada pela centralização da concepção curricular, os exemplos de projectos inovadores, inspirados na concepção de flexibilidade da Nova Escola, ocorreram quase exclusivamente graças ao mérito e empenho de professores e de algumas direcções de escolas, privadas e públicas… Não.

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Rui Gaudêncio

À alegada falta de qualidade da escola pública subjaz toda uma outra questão: a do convívio, tão enriquecedor quanto difícil, entre crianças de diferentes meios sociais de origem, de culturas, etnias e línguas maternas distintas, com diferentes recursos familiares para detectar precocemente eventuais problemas de aprendizagem, de desenvolvimento, de interacção com o outro. Mas, então, a alternativa passaria, ou passará, pela escola-redoma de vidro, que não prepara para a vida.

Muitos outros debates sobre a função social da escola como condição e factor de democracia se têm vindo a desenvolver. Não cometendo a injustiça de omitir nomes fundamentais do pensamento sobre a escola democrática em Portugal, referir-me-ei apenas às problemáticas em si. Mas quem investiga neste domínio fica surpreendido com a riqueza da reflexão desenvolvida pelos cientistas da educação portugueses.

Relevante é a questão que alguns designaram por “escolocentrismo”, relativa aos limites da intervenção da escola face à família, aos apoios sociais e públicos, aos poderes administrativos. Discute-se se o professor não se estará frequentemente a substituir à família, ao assistente social, à junta de freguesia. Se a escola não estará a ser chamada a satisfazer necessidades que não constituem sua atribuição, como por exemplo a alimentação dos alunos carenciados em períodos de férias escolares ou situações de pandemia. Para mim é muito positivo que a escola democrática o faça, desde que se municie dos recursos indispensáveis em funcionários.

Mas não é ao professor que deverá caber mais essa função. Já está sobrecarregado com uma quantidade exagerada de tarefas burocráticas e administrativas que lhe tiram o tempo indispensável para se preparar, interagir com os alunos nas aulas e fora delas, com os pais, outros colegas, grupos de investigação, redes de partilha de recursos… e para descansar junto da própria família. Aspecto que, se remete para as conhecidas indefinições dos estatutos das carreiras docentes, não deixa também de questionar as práticas de gestão e administração das escolas.

A situação do professor dos níveis de ensino básico e secundário é, efectivamente, crítica. Muito nos preocupa a precariedade crescente nos mercados de trabalho, em geral. E a situação do professor, cuja precariedade pode durar décadas, levando-o a ter, muito provavelmente, de mudar de casa várias vezes, custeando por si rendas e deslocações e correndo frequentemente o risco de apenas ter semanalmente dois dias, incompletos, para estar com a família?!

Ao mesmo tempo exige-se-lhe um nível de desempenho indispensável para que a escola faça boa figura nos rankings. Qualquer gestor principiante sabe que não pode ter trabalhadores motivados se não lhes proporcionar condições de trabalho dignas, mas as tutelas da Educação ainda não o apreenderam.

Falava atrás nos rankings, aspecto especialmente marcante no ensino superior. Esta globalização que vivemos, se trouxe desafios importantes, introduziu também distorções que muitas vezes passam despercebidas. A opinião pública é sensível aos rankings das instituições, mas raramente faz ideia do que eles escondem.

Com efeito, actualmente o ensino superior constitui um importante mercado internacional. Através de programas de mobilidade, como o Erasmus, os estudantes são atraídos por universidades de outros países para nelas fazerem, no todo ou em parte, a formação superior. Situação idêntica sucede com os professores. Estes fluxos de mobilidade ocorrem geralmente entre universidades com convénios entre si, a fim de se garantir que os programas de estudos são compatíveis e, assim, homologáveis.

Pense-se um pouco na diversidade cultural, histórica e social dos diferentes países e facilmente se percebe a dificuldade em comparar os planos de estudo, mesmo dentro de uma dada área disciplinar. A não ser… que aqueles programas disciplinares sejam depurados das referências históricas, das marcas culturais de génese, das grandes questões sociais… Pois é isso mesmo que sucede. Através dos processos internacionais de acreditação, currículos e planos de estudo tendem para a uniformização global. Mas não é isso necessário para a equivalência dos diplomas? Sim, parcialmente. Mas a apreensão dos problemas reais específicos de cada sociedade, a opção entre a diversidade de metodologias, os determinantes históricos e culturais próprios de cada uma delas, escapam por completo ao afã da normalização.

Assim, é o pensamento crítico que não chega a desenvolver-se. A reflexão possível ocorre apenas dentro dos limites estreitos do pensamento estandardizado. Os artigos científicos baseados em abordagens não convencionais não são aceites pelas revistas internacionais que contam para a acreditação. Como esta e a progressão académica exigem a publicação naquelas revistas de um número mínimo de artigos por intervalo de tempo, a maior parte da investigação renega qualquer heterodoxia.

Reprodução sine die do pensamento único, aprendizagem desligada da Ética e da Deontologia profissional, a favor do ensino uniformizado, asséptico, numa palavra. Que profissionais são estes que assim se estão a formar? Que contributo dará esta Educação à consolidação da democracia?

Margarida Chagas Lopes, Doutorada com Agregação em Economia pelo ISEG onde foi docente. É investigadora do SOCIUS, membro do GES (Grupo Economia e Sociedade), da APEM (Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres) e da EERA (European Education Research Association). Tem diversos trabalhos publicados no país e em revistas científicas internacionais nos domínios da Economia da Educação e do Conhecimento.

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