Governo, crítica e pandemia. Ainda o procurador

Na gestão da pandemia, o Governo não poderia ter dado um sinal mais equívoco e enganador num momento absolutamente crucial.

1. A situação sanitária em Portugal é muito grave, gravíssima mesmo. E, por isso, não posso deixar de, nestas linhas iniciais, manifestar o meu tributo a todos os que morreram e a minha solidariedade às suas famílias. E naturalmente formular um voto de melhoras aos que sofrem nos hospitais, nos lares e em casa, bem como aos seus familiares e cuidadores. Finalmente, agradecer a todos os profissionais de saúde e a todos aqueles que heroicamente estão na linha da frente. Partilhar estes sentimentos e estes votos é imperativo. Como imperativo se afigura cumprir com rigor as regras do confinamento e adoptar as boas práticas que impedem ou diminuem a propagação da infecção. Eis uma responsabilidade individual e colectiva que recai sobre todos nós enquanto pessoas e enquanto cidadãos.

2. Subsiste também a responsabilidade política, a responsabilidade de governantes e de autoridades em geral. Mesmo não sendo o tempo de fazer balanços, a obrigação de escrutínio, de crítica e de denúncia continua a ser fundamental. Se todos se conformarem com um silêncio complacente, os riscos de a situação se deteriorar são, como infelizmente temos visto, cada vez maiores. O unanimismo bacoco, o receio de discordar, o cálculo do “popular” são cúmplices do agravamento e da deterioração da situação pandémica. Um governo sob escrutínio mais veemente das oposições, da sociedade civil e do Presidente da República teria decerto actuado mais pronta e eficazmente. As novidades de ontem – ainda insuficientes – são resultado óbvio do escrutínio e da crítica da esfera pública.

Já em Junho, aquando do surto na grande Lisboa, o Governo falhara gravemente. Durante o Verão, na antecipação da segunda vaga, não fez praticamente nada (basta ver o que continua a suceder com o envolvimento dos sectores privado e social na área da saúde). Nas medidas tomadas para contenção da segunda vaga, insistiu-se em irracionalidades como a concentração de horários de abertura do comércio até às 13 horas (que agora, numa lastimável hipocrisia, o Governo usa contra o PSD e acaba de retomar). Ao longo desses meses, o Governo escusou-se a definir uma estratégia para a realização de eleições presidenciais em tempo de pandemia, a qual poderia passar pelo adiamento e/ou pelo voto de correspondência (com uma revisão constitucional cirúrgica e atempada), mas ainda por uma programação cuidada de voto antecipado e/ou uma votação com duração de dois dias.

Na preparação do período de Natal e de Ano Novo, o calculismo populista foi por demais evidente e não tem justificação possível. Quando todos os nossos vizinhos tomavam medidas difíceis e não se coibiam de fazer recomendações severas, Costa deu todos os sinais errados que podia dar. Nem a indicação de um número máximo de pessoas por casa quis recomendar. Já em Janeiro, com pleno conhecimento da gravidade extrema da situação, adiou inexplicavelmente a tomada de medidas. E quando teve que as tomar, mais uma vez, optou por soluções de meias medidas, multiplicou as excepções e não limitou o funcionamento presencial das aulas nas escolas ao ensino básico. Não poderia ter dado um sinal mais equívoco e enganador num momento absolutamente crucial. Daí que, a contragosto, o Governo tenha vindo ontem emendar a mão.

Nos incêndios de 2017, no caso de Tancos, na situação do SEF ou da procuradoria europeia, o Governo é politicamente responsável. Na gestão e controlo de uma crise pandémica, o Governo, por mais atenuantes que possa brandir, é politicamente responsável e não pode deixar de assumir a responsabilidade inerente à liderança.

3. Mudando de tema e a propósito do seríssimo caso do Procurador Europeu, que irá amanhã a debate no Parlamento Europeu (PE), a posição da ministra da Justiça é cada dia mais insustentável. Agora, por depoimento directo do antigo director-geral da Política de Justiça, soube-se que o ministério começou por dar instruções por escrito para escolher o candidato Conde Correia e que, no dia seguinte, a ministra, pessoal e oralmente, mudou de opinião e mandou indicar o nome de José Guerra. Diante desta revelação, são tantas as ilações que a perplexidade criada não podia ser maior.

Primeiro, a ministra esteve sempre medularmente envolvida no assunto, caindo por terra a ideia de uma diligência burocrática de que mal teria tido conhecimento. Quem dá instruções por escrito para privilegiar um nome e depois, em reunião pessoal, revoga essa indicação, apontando um outro nome, está a seguir a questão a par e passo. A ministra conduziu e acompanhou o processo ao milímetro – disso já não restam dúvidas. Segundo, torna-se claro que, para o Governo, servia qualquer candidato, desde que não fosse a procuradora Ana Almeida, seleccionada pelo “júri” europeu. O móbil era, pois e afinal, um e só um: afastar Ana Almeida. Terceiro, a invocação da classificação feita pelo Conselho Superior do Ministério Público – de resto, totalmente indevida – não passou de um pretexto ou desculpa. Se se chegou ao ponto de indicar Conde Correia por escrito, não se valorizava verdadeiramente (e bem) a hierarquização (irregularmente) feita pelo dito Conselho Superior, pois ele aí ficara em segundo lugar.

O primeiro-ministro, que jurou que o assunto não tinha relevância europeia, decidiu escrever, por sua vez, uma carta explicativa ao líder parlamentar do Grupo Liberal no PE. Na carta, diz que fez aplicar a Lei n.º 122/2019, que não estava em vigor à data da escolha feita pelo Governo! Diz ainda que o Conselho da UE vai analisar a questão, decerto porque o assunto é irrelevante. O PE, em plenário, vai amanhã debater a falta de transparência na nomeação do procurador português. Num debate tão importante, e não sendo usual estar o primeiro-ministro, esperemos que Portugal se faça representar pela ministra da Justiça. É o mínimo dos mínimos. Afinal, foi ela quem acompanhou e validou todo o processo. Quem não deve, não teme.

Sim e Não

SIM. Conferência sobre o Futuro da Europa. A presidência portuguesa não pode protelar mais o início da conferência, por mais que desagrade ao Governo. Está na altura de a desbloquear; poderá contar connosco e com o PPE.

NÃO. Governo e ministra da Saúde. A recusa de recurso ao sector privado da saúde, que esteve e está disponível, passa todos os limites. Num momento tão grave, não há quem entenda tamanha teimosia ideológica.

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