A “geringonça” no seu esplendor

Bloco e o PCP poderão dizer que, à sua custa, a pérfida ganância do lucro foi travada e o PS dirá sem mentir quem breve os privados terão uma porta aberta no SNS

Quando muitos começavam a decretar o fim da solução de apoio parlamentar que sustentou o Governo na legislatura, eis que a chamada “geringonça” reaparece em todo o seu esplendor com o anúncio de um acordo para a Lei de Bases da Saúde. Nenhum dos ingredientes a que nos habituámos nos últimos quatro anos faltou. Nem teatralidade, nem dissimulação, nem o frágil equilíbrio que permite a conciliação de ideias opostas, nem o adiar dos problemas, nem a fotografia na qual PS, PCP e Bloco cabem com um sorriso nem, claro, a imposição da lei do mais forte – o PS adiou as suas bandeiras das PPP, mas não cedeu no essencial.

O súbito e inesperado renascimento da “geringonça” é a prova de que a solução deixou de ser conjuntural. Em causa já não está uma ousadia efémera. A procura de entendimento tornou-se um hábito. A esquerda aprendeu a relacionar-se, gostou de se relacionar e há-de fazer tudo para manter a relação no futuro. Só um resultado nas eleições fora do normal pode ameaçar o enlevo – uma vitória esmagadora do PS ou um disparo do Bloco. O esforço, as cedências, os compromissos e o desejo dos três partidos de encontrar uma plataforma mínima de entendimento numa matéria sensível como a Saúde mostra uma aliança de propósitos bem mais sólida do que as esporádicas declarações dos seus líderes deixam antever. Na sua análise à Lei de Bases, o Presidente vai ter de considerar este empenho.

Como não podia deixar de ser, uma lei de bases apoiada por comunistas e bloquistas tinha de abolir a participação privada. Como tinha de ser, nenhuma solução proposta pelo PS para a gestão do sistema público de Saúde podia deixar de admitir os privados. Por sorte, o PCP temperou a ideologia com pragmatismo e permitiu uma ponte para a gestão “supletiva e temporária” por privados. Daqui a seis meses essa gestão será aprovada, só pela esquerda ou com a direita. E assim todos puderam celebrar. A Lei de Bases é de esquerda, para já. Daqui a seis meses, venha quem vier, a realidade acabará por se impor e ficará então mais claro o que hoje é evidente: a saúde dos portugueses não dispensa o envolvimento dos privados. Nem o Presidente jamais o toleraria.

Até lá, porém, o Bloco e o PCP poderão dizer que, à sua custa, a pérfida ganância do lucro foi travada e o PS dirá sem mentir que em breve os privados terão uma porta aberta no SNS. Seria melhor uma lei mais realista e despida de jogadas tácticas? Sem dúvida. Mas não é por seis meses que o sistema irá paralisar.

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