Constantino cumpre 39 anos de prisão por crimes de burla e falsificação

A pena máxima de prisão prevista em Portugal é de 25 anos. Em caso de penas sucessivas, esse limite pode ser ultrapassado. Constantino Oliveira cumpre 39 anos e a análise da sua liberdade condicional continua suspensa.

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Constantino Oliveira no estabelecimento prisional Santa Cruz do Bispo em Matosinhos Adriano Miranda/Publico

Constantino Dias Oliveira ponderou o peso das suas palavras e decidiu tornar o seu caso público. Perante as ameaças e risco de represálias, escreveu uma carta, e depois outra e ainda mais duas – entre Setembro e Novembro – a contar ao PÚBLICO por que se vê como um condenado a prisão perpétua.

Com 63 anos de idade, condenado a penas sucessivas num total de 39 anos, por burla e falsificação, restam-lhe ainda 16 anos. Não sabe com que idade sairá do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo onde está, sem nunca ter saído, desde 2002. Será sempre tarde de mais, pressente.

Já ouviu, sem saber com que fundamento, que um dia seria transferido “para longe”. “Esta arbitrariedade iria afastar-me definitivamente da família.” Recebe visitas regulares da mulher, da filha e da irmã.

Contudo, prefere falar e dar voz a um sentimento: de que afinal a prisão perpétua existe em Portugal. O seu caso seria prova disso. Deu-lhe que pensar o que uma procuradora lhe disse: “Já não tem nada a perder.” Também um comissário dos guardas, um destes dias, verbalizou: “Você se sair daqui, sai de muletas.”

Os vários processos por burla e falsificação que visaram Constantino Oliveira nos anos 80 e 90 correram em diferentes tribunais, e nalguns deles, o acusado não chegou a conhecer quem o defendia. Distingue na pele “uma justiça dos pobres”.

“O processo dele obrigaria a que o tribunal se dedicasse com cuidado a todas as vicissitudes do processo”, diz Manuel Almeida dos Santos, engenheiro e presidente da Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (OVAR), no Porto, que conhece bem este caso. A OVAR venceu este ano o Prémio Direitos Humanos da Assembleia da República (AR), pelo trabalho junto da população reclusa, contribuindo, segundo um comunicado da AR com data de sexta-feira, para “a humanização do sistema prisional”.

Quando há penas a serem cumpridas sucessivamente, o condenado começa a cumprir a metade da segunda pena, logo que tenha concluído a primeira metade da primeira pena. E assim sucessivamente. Tal está previsto no Código Penal e dá a possibilidade ao condenado de ver analisada a sua saída em liberdade condicional quando tiver cumprido metade do total das penas sucessivas (por exemplo, quando tiver cumprido 17 anos de penas sucessivas num total de 34 anos).

No caso de Constantino Oliveira, isso poderia acontecer em 2021. Sucede, no entanto, que quando se está perante cúmulos sucessivos, a maneira como se analisa a liberdade condicional fica suspensa.

“Não matei, não violei, não trafiquei”

Nos anos 90, tinha sido condenado a uma medida de internamento em hospital psiquiátrico, por ter sido considerado inimputável. Esteve 42 dias no Hospital Sobral Cid em Coimbra, de onde fugiu em 1998, voltando a cometer ilegalidades.

O TEP do Porto recusa agora contabilizar quase quatro anos (incluindo os 42 dias de internamento no Sobral Cid) para o total da pena a ser considerada, e indeferiu dois pedidos do advogado. Um terceiro requerimento já deu entrada nesse tribunal.

“Não matei, não violei, não trafiquei”. “Pratiquei crimes contra o património, nunca contra pessoas. Confessei sem reservas todos os factos – muitos. Pelos erros praticados me desculpo, assumo e amarguradamente me arrependo”, escreve numa longa carta ao PÚBLICO.

“O que afirmo não são utopias inventadas ou lirismo. Mais de 16 anos de prisão, doenças crónicas e um arrependimento amargo, ensinaram-me que o caminho é outro. Quero desfrutar da velhice, compensar a família, dar abraços de esperança, beijos de agradecimento”, continua.

O sistema prisional e judicial tem, no seu seio, pessoas que “cristalizam, no seu entender, que o recluso é criminoso para sempre”, denuncia. “É verdade, aqui não se evolui. Os muros altos das prisões não foram feitos somente para que os presos não fujam, mas também para que, do exterior, se não veja o que se passa cá dentro.”

Em causa a Constituição

A Constituição da República estabelece que “não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”. O Código Penal prevê, desde 1995, que “o limite máximo da pena de prisão é de vinte e cinco anos nos casos previstos na lei” e ainda que “em caso algum pode ser excedido o limite máximo referido” de 25 anos.

Contudo, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, citado no Código Penal, determinou em 2012 que “desde que haja sucessão de crimes ou um crime continuado, nada impede que um determinado arguido cumpra diversas penas de 25 anos de prisão”.

O PÚBLICO solicitou em Setembro a consulta do processo no Tribunal de Execução de Penas (TEP) do Porto, para confirmar que neste caso um dos cúmulos jurídicos de penas foi determinado sem conhecimento do tribunal judicial de que dois outros processos – relativos a vários crimes – avançavam em paralelo.

Pelo menos um conjunto de crimes já tinha sido cometido antes da decisão definitiva dos tribunais, o que daria a possibilidade de se juntarem as penas num só cúmulo. Apesar do consentimento por escrito do arguido, para essa consulta do processo, o tribunal ainda não a autorizou.

“O que acontece muitas vezes é que o tribunal que está a decidir não tem conhecimento que outros processos estão pendentes noutros tribunais, e se não tiver, em vez de decidir por um cúmulo jurídico, acaba por haver execução sucessiva de penas e podemos ter pessoas a cumprir no total mais do que os 25 anos de prisão”, explica André Lamas Leite, especialista em Direito Penal. “Não são muitos os casos, mas é possível” quando não há esse conhecimento de processos anteriores a uma decisão transitada em julgado.

“O entendimento geral, e esse é pacífico, é que não estando prevista [na Constituição] a prisão perpétua não se pode admitir que as penas sucessivas levem a uma duração tal que se equipare a prisão perpétua”, considera, por sua vez, Manuel Almeida dos Santos, presidente da OVAR.

Sem informação de outros casos

Nas cartas que escreve ao PÚBLICO, Constantino Oliveira diz apenas conhecer uma outra situação semelhante à dele: de um condenado a 42 anos de prisão e preso há 29 anos.

Questionada sobre o número de reclusos a cumprir penas (ou cúmulos) sucessivas, em Portugal, a Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais respondeu que não tem essa “informação estatística uma vez que o registo das penas se faz em função da sua dimensão e não do número de penas de que as pessoas possam ser objecto”.

“Acho difícil, porque é contrário ao nosso quadro constitucional e legal, sujeitar um condenado a cumprir mais de 25 anos”, considera o advogado de Direito Penal e professor assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Tiago Geraldo. “[Isso] é ir além do que o próprio legislador entende como máximo necessário para garantir a reinserção social [do preso] e prevenir a reincidência [do crime]”.

Nas detalhadas cartas que escreve, Constantino Oliveira insiste que não cometeu crimes de sangue, nem crimes contra as pessoas, que está arrependido, pede perdão às vítimas que enganou ou desfalcou. E diz: “O arrependimento é uma dor tamanha que já não cabe no meu tempo.”

Notícia corrigida. Numa primeira versão desta notícia lia-se que Constatino esteve quatro anos no Hospital Sobral Cid, em Coimbra. Um erro. Foram apenas 42 dias

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