Matosinhos Três cadeias e 14% dos presos de Portugal

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Paulo Pimenta

Nenhum outro concelho do país conta tantos reclusos. A vida de quem está preso não se esgota entre muros. Há um entra-e-sai que também se faz de trabalho ou de arte. São breves momentos de liberdade.

Nem se dá pelo vento. Só se ouvem os motores das duas ceifeiras. Atrás de cada uma, um homem com uma saia de plástico e um par de óculos. Parecem absortos numa dança descasada. Perto deles, dois homens limpam o passeio com vassouras de fibras rígidas; outro limpa a relva com vassoura de aço.

Quem passa pela Praia da Memória não adivinha, mas estes homens cumprem pena de prisão. Chegaram numa carrinha da Câmara de Matosinhos. Supervisiona-os um jardineiro do município, a que agora se chama "assistente operacional". Vigia-os um guarda sem farda.

Andam todos os dias pelas praias e jardins do concelho. "Estão quase em fim de pena", diz Manuel Santos, sem os perder de vista. "É do interesse deles portarem-se bem para saírem o mais depressa possível. Ganham o salário mínimo. A câmara é que lhes paga. Já é uma ajuda. Quando tiverem liberdade condicional, têm um pé-de-meia para se orientarem."

Matosinhos concentra 1836 das 13.023 pessoas encarceradas em Portugal. Nenhum outro concelho conta tantos reclusos. E assumem formas diversas, nem sempre evidentes, as relações entre quem faz vida dentro e quem faz vida fora dos muros que cercam as três prisões.

Paulo é o mais antigo da brigada que esta manhã se ocupa do sítio onde D. Pedro desembarcou decidido a derrubar D. Miguel. "É um alívio para a vista." Não só por causa do mar, onde de repente se perde o seu olhar. Por se cruzar com gente como o homem de barbas brancas que agora passa de bicicleta. "Lá dentro são sempre as mesmas caras."

Sente-se útil para a sociedade. Já se sentia ao trabalhar dentro do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo. "Trabalhei sempre. Primeiro trabalhei de graça, depois a 50 cêntimos por dia, depois a 1,35 euros, depois a 2,75 euros. Fui serralheiro cinco anos. Trabalhei nas obras da clínica. Tudo o que era serralharia passou pela minha mão."

O estabelecimento prisional (EP) abarca um pavilhão destinado ao regime comum, uma clínica psiquiátrica e uma unidade livre de drogas. Paulo esteve dois anos internado na clínica. Tinha de se livrar do delírio de ciúme que o fazia maltratar a mulher. "Trabalhar foi a melhor terapia que arranjei."

Assume o que aconteceu. "Cometi um dos piores crimes que podem existir na superfície da terra." Percebe que fez mais do que matar a mulher. Matou a mãe dos seus dois filhos. "Com o de 12 anos falo, com o de 19 não. Não tem pai... Gostava de pedir perdão a quem fiz mal..."

Apanhou 12 anos e meio de prisão. Já lá vão seis, este último a trabalhar no exterior. "Sem farda é melhor. Não chama a atenção de quem passa. Mas não tenho vergonha de dizer quem sou e de onde sou. Não tenho problemas que se saiba que sou um preso. Não me sinto inferior."

O assistente operacional Marcelino Santos está satisfeito com ele e com o resto do pessoal. "Temos uma equipa muito jeitosinha. Todos se aplicam. Alguns podem não saber muito, mas têm vontade de aprender. E uns ensinam os outros. A gente explica, eles tentam fazer o melhor."

Este ano, o orçamento municipal prevê 73.534 euros para pagar oito reclusos embrenhados em trabalhos de "limpeza e manutenção de espaços públicos, vigilância e limpeza de sanitários públicos e armazéns gerais". O protocolo já vem de 1997 e o vereador Fernando Rocha não encontra registo de qualquer problema. Até se lembra de um recluso tão profissional que acabou por ser integrado nos serviços da Biblioteca Municipal Florbela Espanca.

Acordam às 7h. Às 8h, estão a entrar na carrinha e a avançar em direcção ao horto municipal. Às 9h têm de estar com as mãos na vassoura ou noutro instrumento qualquer. Fazem um curto intervalo às 10h30. Comem fruta, pão ou iogurte. Trabalham até às 14h. "O nosso almoço é ao lado de engenheiros da câmara", orgulha-se Negrão, o segundo mais antigo da brigada, um gráfico que a droga atirou para a prisão. Almoçam na cantina municipal.

As origens

Tudo começou com a antiga Colónia Penal de Santa Cruz do Bispo. Instaurada a República, foi nacionalizada a quinta, que no século XIII fora deixada à Igreja Católica pela Rainha Santa Mafalda. Em 1935, o lugar bucólico, que entretanto o povo passara a usar para piqueniques, converteu-se numa extensão da Cadeia Civil do Porto. Onze anos volvidos, emancipou-se.

A Cadeia Civil do Porto já não mora na Baixa - o edifício que partilhou com o Tribunal da Relação acolhe agora o Centro Português de Fotografia. Quatro dias depois da Revolução de 1974, os reclusos começavam a ser transferidos para uma freguesia de Matosinhos: Custóias.

A Brigada de Trabalho Prisional do Porto, formada por 230 reclusos, fora criada em 1961. O processo arrastara-se sem que o plano do arquitecto Rodrigues Lima ficasse concluído. Por motivos de segurança, tudo se precipitou. A velha cadeia, de planta trapezoidal, deu lugar a uma nova, em forma de poste telegráfico, que está a abarrotar com 1022 presos - preventivos da área metropolitana e condenados do Norte do país a aguardar transferência.

"Acho que isto teve a ver com a evolução do sistema prisional, que tem vindo a passar os EP para fora dos centros das cidades", avalia Joel Cleto, chefe da Divisão Municipal de Cultura e Museus. Santa Cruz do Bispo é uma freguesia rural. O historiador costuma dizer que vive na aldeia mais próxima do Porto. E Custóias não tinha tantas vias, tantos edifícios como hoje. Joel ainda se lembra de contornar a prisão em 1974: "Era só campos."

Por fim, surgiu o Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, a ensaiar um modelo de gestão partilhada com a Santa Casa da Misericórdia do Porto, que assume tudo menos o tratamento penitenciário. Se das outras vezes o povo de Matosinhos não ousara barafustar, desta vez fê-lo: já lhe bastava ter duas cadeias centrais. Venceu o argumento de que era uma necessidade premente no Norte. A secção feminina de Custóias não dava para as encomendas. Algumas mulheres iam para Felgueiras, outras para Tires. Tires era o "desterro". Nos dias de visita, algumas agarravam-se às grades aos gritos.

Nos primeiros dias de 2005, entraram as primeiras reclusas. É uma cadeia-modelo. Nada parece faltar, mas falta. "Vivem numa quinta fabulosa, que no século XVI foi considerada a mais bela da Península Ibérica, e não têm uma janela virada para ela", observa Joel.

Professores da Escola Secundária João Gonçalves Zarco e da EB 2/3 e Secundária de Leça da Palmeira vão ali dar aulas. Nesse âmbito, Joel faz visitas guiadas a reclusos e reclusas pela quinta. Aponta a arquitectura. Mostra as esculturas. Conta as lendas. "Elas sentem muito mais a experiência do que eles. Algumas descalçam-se, metem os pés na água."

Do mal-estar dos primeiros tempos, nem sinal. "Há uma relação harmónica com a vizinhança", entende Hernâni Vieira, que já dirigiu o EP do Porto e dirige o EP de Santa Cruz do Bispo. Muitos funcionários da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais vivem em Matosinhos. A vida prisional convoca visitas, visitadores, advogados, magistrados, que usam transportes e frequentam cafés, restaurantes, pequenos comércios. E, afinal, tudo isso ajuda a dinamizar a economia local.

De dentro para dentro

Do laranjal do EP de Santa Cruz do Bispo avista-se o rio Leça, que passa manso, manso. De manhã, dois homens apanham as laranjas que hão-de lavar ainda hoje na fonte da serpente. Com todo o cuidado. Diz-se que quem bebe água daquela fonte nunca mais dali sai; alguns inimputáveis parecem ter cedido à tentação - estão ali há mais de 20 anos.

Aquelas laranjas serão servidas amanhã nos refeitórios da quinta. Vão 286 para o EP feminino, ficam 538 no masculino. Uma caixa segue para o mercadinho gerido por Alberto, o mais culto dos reclusos, que tem a cela tomada pelo cheiro dos muitos livros e jornais que lá guarda.

- Bem-vindo à minha superfície comercial!

Entram presos, funcionários ou ex-funcionários, como o velhinho de voz sumida que usou farda durante 35 anos.

- São tangerinas grandes.

- Mas são muito boas, muito doces. As outras, de outra qualidade, são apanhadas mais cedo.

Também há laranjas, nabiças, couves, kiwis, limões.

- Como está o kiwi?

- É tudo fresco, tudo apanhado no próprio dia.

Leva laranjas, tangerinas, kiwis e couves. Ainda pergunta pelas nabiças, mas Álvaro não lhas recomenda. Já estão em fim de época, já lhes sobra folhas amarelecidas em cada molho. Teme que o idoso, que mora sozinho, numa casinha ali perto, não saiba escolher as boas.

Subindo a rampa, fardos de milho silado cobertos de plástico. A vacaria fica à esquerda. O chão está molhado. Acaba de ser lavado. Vinte animais acomodam-se perto uns dos outros: 15 vacas de leite e cinco crias, que serão vendidas assim, pequeninas.

- Estão aqui bem lindas, bem tratadinhas.

Nem têm um mês. António, o recluso que assim fala, tem 55 anos. A polícia apanhou-o a conduzir sem carta seis vezes. Os processos acumularam-se no tribunal. O juiz perdeu a paciência.

- Quando era novo, a minha alegria era andar com os animais. Gosto de animais. Quem está aqui tem de gostar de animais.

Os pais de António eram lavradores. Havia galinhas e coelhos lá em casa. E ele ia apanhar erva para os alimentar. Aqui não. Aqui a brigada agrícola semeia milho. O milho é silado. E é disso que se dá às vacas. Disso e farinha. "Farinha é o melhor para as chamar."

A brigada levanta-se bem cedo. Às 7h, primeira ordenha. Há que guiar as vacas até ao pasto. "Fazemos uma lavagem como manda a lei. Quando voltam, está tudo preparado para o almoço delas. Elas comem, descansam um bocado - fazem a sesta delas, não é? Às 18h30, chamamos." António encontrou um jeito. "Nina! Então, Nina! Vamos à farinha?"

Encaixam-se num gradeamento, umas ao lado das outras, com a farinha à frente, não vá alguma irritar-se. Lava-se-lhes as tetas com água quentinha. "Não pode ser fria. Estremecem." Às 19h, segunda ordenha. A hora repete-se, faça chuva ou faça sol. "Não é quando a gente quer." Dia sim, dia não, uma conhecida empresa vem buscar 800 litros de leite.

Os nomes das vacas vão sendo escritos numa parede da vacaria - "Primavera", "Princesa", "Branquinha", "Estrela", "Alegria", "Vaidosa", "Mimosa". Quatro homens cuidam delas - o quinto da brigada ocupa-se dos coelhos e das galinhas. Trabalham em equipa, sob orientação de um engenheiro. Agora mesmo, um foi levar um carro de estrume lá para baixo, para o campo. António ficou. "Isto não pode ficar abandonado. Toca o telefone, tem de estar aqui alguém." Estão dois a descansar, estendidos nas respectivas camas, na camarata encostada à vacaria, incapazes já de sentir os cheiros próprios do lugar.

De fora para dentro

Há muita coisa a acontecer dentro da antiga quinta. Nas oficinas da cadeia de mulheres, 52 fazem trabalhos que não podem ser automatizados. Costumam ser mais. Podem ser até 110 ou 120. No início do ano, depois da azáfama que é Dezembro, há sempre menos afazeres.

O trabalho é trazido até à porta por empresas de diversas zonas do país, como Guimarães, Braga, Trofa, Felgueiras, Famalicão, Póvoa de Varzim, Lisboa. São trabalhos de confecção, de calçado, de embalagem, de caixilharia, de cestaria. À entrada, há uma engomadoria: uma empresa traz quilos de roupas engelhadas e leva-as todas esticadinhas.

Algumas habituaram-se a recorrer à prisão. Outras só o fazem em períodos de maior afluxo de trabalho. O coordenador da Santa Casa da Misericórdia do Porto, Manuel Belchior, nota reflexo do exterior. "Tivemos um momento de recuo, mas em 2010 e em 2011 tivemos mais trabalho do que nunca. Muitas empresas fecharam, muita coisa aconteceu. Trabalho feito deixa de ser feito; a empresa quer produzir, bate à porta da cadeia."

Por estes dias, as que se ocupam dos enrolamentos estão sem trabalho. Em alternativa, colocam minúsculas peças de metal dourado em camisolas cor-de-rosa. Entre elas, uma cose "sapatos luva" para uma empresa de São João da Madeira. Chama-se Otília. "A trabalhar de amanhã à noite, faço dois sacos. Dois sacos são 20 pares. São 3 euros e tal por saco."

Lá fora, a mulher, de 41 anos, dedicava-se à costura. Está aqui por tráfico de droga. "Foi depois de o meu pai falecer. Achei que não tinha nada a perder. Graças a Deus nunca consumi." Foi condenada a seis anos e meio de prisão. Talvez a deixem sair em Agosto, quando completar dois terços da pena. Já se imagina a andar a rua e a cruzar-se com alguém que esteja a usar uma destas peças que lhe saem das mãos: "Ei! Eu é que fiz isso!" Não quer voltar para este lugar: "A gente fica saturada. Às vezes, estou no refeitório e é um barulho, mas não sou ninguém para mandar calar. Não gosto de confusões." Não é só isso: "Tenho medo de doenças. Uma pessoa pode-se picar ou cortar-se. Graças a Deus entrei sem nada. Quero sair sem nada. Não quero apanhar nenhuma doença. Deus me livre."

Catarina Rocchi, a técnica responsável pelas oficinas, lembra-se de um acidente: uma reclusa infectada com VIH picou-se e passou a agulha a outra, que também se picou. Recebeu retrovirais. Não ficou infectada. "Pedimos às empresas para trazerem agulhas para o material não passar de umas empresas para as outras. Quando chegam novos trabalhos e é preciso usar material de corte, falamos com as reclusas para não partilharem material."

As caixas de material estão numeradas. Todas as manhãs, as supervisoras entregam-nas. Todas as tardes, as reclusas devolvem-lhas. O material é sempre contado, à frente delas, pelas guardas. Cada uma tem um tubinho para guardar a sua agulha. Pode levá-la para a cela. E, aí, quem controla o seu uso? "Elas têm noção do que pode acontecer", considera Catarina. "Na ala fazem algumas tatuagens. Não conseguimos evitar. Também fazem manicura."

Otília leva a agulha para a cela. Está na cela das 19h às 8h. Às vezes, consegue superar a produção do dia. "Quando há trabalho, trabalho todo o dia. Quando não há, fico a fazer a vida de casa. Não é casa, mas é como se fosse. É limpar a cela. Se fico sem nada para fazer, começo a pensar nas coisas. Gosto de trabalhar. Distraio-me e ganho. Pouco ou muito, ganho."

No mês de Dezembro, o sector das oficinas facturou 8 mil euros: 10 por cento para o fundo do estabelecimento prisional. Ali dentro, trabalhou-se para 12 empresas. Liderava a produtora de camas de animais e rolos de tapar frechas de janelas ou portas, seguida pela produtora de rolamentos e outras peças de caixilharia. Tirando supervisoras, ninguém superara Otília - 202,01 euros de salário.

Otília não pode gerir o dinheiro como entender - ninguém ali o pode fazer. Metade fica na reserva, metade fica no fundo disponível, mas só se pode gastar até 60 euros por semana no mercadinho. De quatro em quatro meses, Otília levanta 400 euros para gastar na saída precária.

Nem sempre são assíduas as mulheres que trabalham naquelas cinco "oficinas". O técnico Rui Noronha compara-as a crianças numa sala de aula: "Cinco minutos antes de a campainha tocar, já estão a arrumar as coisas." Não por acaso. "A maior parte não tem percurso laboral. Estarem cinco ou seis horas a executar uma tarefa já é uma grande coisa."

Não estão habituadas a cumprir horários. Não estão habituadas a estar num espaço fechado. E falta-lhes motivação. Algumas dizem: "Trabalhávamos por mil euros por hora, agora vamos trabalhar por cêntimos?" O absentismo, nota o técnico Pedro Silva, pode ser grande. "Pode haver um dia normal em que metade não vem, fica a dormir, vai à ginástica, o que for. E há prazos. Muitas vezes, quando aqui chegam, as empresas já excederam o prazo de entrega."

A equipa verifica as presenças. Se alguém desaparece três dias sem justificação, sai da brigada, fica na lista de espera. Algumas nunca faltam. Precisam do dinheiro para pagar as suas despesas ou até para ajudar a família. Havendo pouco trabalho, até podem andar à porrada para o conseguir. Rui já assistiu a brigas feias. "Puxam o cabelo como se o fossem arrancar."

Nunca se sabe quando o ambiente pode avinagrar. Os técnicos de reeducação transmitem informações sobre eventuais causas de conflito. Há famílias ciganas que não podem estar na mesma sala, por exemplo. Catarina pode separá-las, mas o espaço é pequeno. "Se querem trabalhar, têm de se cruzar."

A comunidade cigana está sobre-representada ali dentro. As mais velhas não sabem ler, nem escrever. Há uns tempos, umas estavam a colocar rótulos invertidos em pequenas garrafas de azeite. E é por episódios como esse que Catarina tudo quer supervisionado. Tudo.

Hábito por hábito

Nas praias e jardins de Matosinhos, Valdemar sente-se a ganhar um hábito que perdeu muito novo. Aos 16 anos enfiou-se nas drogas. "Percebi na tropa o que era a abstinência de heroína. Primeiro não consumia, não conhecia o terreno. Depois, foi o descalabro. Estava em Setúbal. O Casal Ventoso era perto. Ia lá. Mal vim da tropa, fui preso por tráfico."

Nos últimos 20 anos, esteve preso várias vezes. Lembra-se de o pai estar a morrer e de ter tido uma saída precária para o ver. "As últimas palavras que teve para mim foram azedas. Não queria falar comigo, mas eu falo com ele quando vou a casa. Sento-me na campa e falo um bocado. É uma das coisas que tenho entaladas: não ter resolvido as coisas com ele. Fiz um juramento que não cumpri: jurei que não ia voltar a consumir nem a ser preso e estou aqui. O mundo da toxicodependência é complicado. É viver um dia de cada vez." Deu muita dor de cabeça ao entrar. "Ainda consumi seis meses na prisão. É muito difícil consumir na prisão. Fica muito caro. Cheguei ao limite quando a minha sobrinha, de 14 anos, me disse: "Se continuas assim, não venho mais aqui." Fui para a Unidade Livre de Drogas."

Sente-se um tanto responsável pelos sobrinhos. No seu primeiro dia de regime aberto, sofreu um valente desgosto. "O meu cunhado, que trabalhava em Espanha, vinha para a comunhão do meu sobrinho e morreu. Foi um pneu que furou. Tive vontade de consumir, claro que tive. Ajuda logo tudo. Mas pensei na família, nos sobrinhos. Não consumi."

Fez uma amiga na Unidade Livre de Drogas. Manuela Magalhães, do Projecto de Voluntariado em Matosinhos, trazia-lhe mundo. "Ela ainda me visita todas as semanas. Quer sempre saber como estou. É uma senhora muito prestável. É um ser humano que... não há palavras." Ela também faz voluntariado na prisão feminina. No projecto de voluntariado da autarquia, destacam-se ela e Ilda Taborda, virada para a leitura e a escrita.

De fora para dentro

Diversos artistas trabalham com as prisões do concelho. A Orquestra de Jazz de Matosinhos, a Casa da Música, a Pele - Espaço de Contacto Social e Cultural. Ainda há dias, a Pele estreou Inesquecível Emília, espectáculo de teatro do oprimido, na prisão feminina.

O curinga Hugo Cruz deu o mote: cartas que gostariam de receber na prisão. E 15 mulheres puseram-se a escrever. Ele cozinhou aquilo tudo. Depois, elas representaram, dançaram, cantaram - com a ajuda de Manuela Azevedo, dos Clã. "Elas queriam falar na prisão, mas não muito, porque disso estão fartas. E queriam uma coisa divertida", conta ele. Chegou-se a um equilíbrio, que é "uma viagem permanente entre a realidade e a fantasia".

Ouvem-se sempre sotaques estranhos em actividades como aquela. Talvez por a prisão ser mais intensa para quem está preso num país desconhecido, como Sara, há um ano e meio apanhada com cocaína no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, num voo procedente de Caracas. "Não ter liberdade é triste, é muito triste. Não esperava ficar presa num país estrangeiro. Sinceramente, não esperava. Esperava entregar a droga, receber o dinheiro, voltar a casa."

Parece-lhe que as coisas, lá fora, estão complicadas. "O que conheço de Portugal é o que vejo pela televisão. Nos quatro canais, não se fala em política. Nos quatro canais, só se fala em crise, orçamento, dívida, austeridade. São os de cá, é essa da Alemanha, é esse da França..."

O teatro é "outra janela" que se abre. "Isso tira-me da prisão, totalmente!", diz a rapariga, de 24 anos, que estava no 3.º ano do curso de Medicina. Não só por estar entretida ou assumir uma personagem. "Não nos tratam como reclusas, tratam-nos como pessoas." Na ala, às vezes, sente-se apenas um número, uma espécie de robô programado para obedecer.

Nos dois sentidos

No lado dos homens, os barulhos parecem mais diversos. Ouve-se encaixar pedra - são os alunos do curso de calcetaria, dado pelo Centro Protocolar para a Justiça, que estão a aproveitar a aula prática para arranjar uma rua. Um pouco abaixo, um som estridente de motosserra.

Cláudio está na brigada agrícola há um ano. "Fazemos de tudo. É limpar terreno, é plantar, é colher, é cortar lenha." O terreno está todo aproveitado. São mais de 30 hectares. Não tinha experiência. Lá fora fazia cargas e descargas. Nem por isso torceu o nariz à brigada quando entrou no regime aberto virado para o interior. "O tempo passa mais rápido."

Apanhou seis anos e meio por tráfico de droga. Cumpriu três. E nestes três já fez muita coisa. "Tirei um curso de inglês. Tirei um curso de computadores. Tirei um curso de técnicas de procura de emprego. Fiz um RVCC [processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências] para ficar com o 12.º ano. Entrei numa peça de teatro."

Participou no Sicrano de Belgerac, reinvenção de Jorge Louraço Figueira da peça Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, em cena no teatro municipal. Fazia de Fulano, amigo de Sicrano. "Foi a primeira vez que fiz teatro na vida. Nunca tinha pensado fazer tal coisa."

Era o "menino lindo" da encenadora Luísa Pinto. Ela não espera que ele faça carreira, mas acredita que a experiência o mudou para sempre. "Tornou-se numa pessoa mais culta. Só lia jornais desportivos. Descobriu o gosto pela leitura. Agora, sai da prisão e vai a exposições, vai ao teatro, compra livros."

Não era um espectáculo qualquer. Luísa fazia tese de mestrado em encenação na Escola Superior Artística do Porto. Nela defende que a reinserção pelo teatro não se faz intramuros. "Quem vê esses são outros reclusos, seus familiares e algumas pessoas que vão lá como vão aos meninos com deficiência: "Oh, que engraçado!" Integração, para mim, é quando o público não percebe quem é actor profissional e quem não é, fixa-se no objecto artístico."

Fez casting na quinta de Santa Cruz do Bispo, como fez lá fora. Álvaro, o da "superfície comercial", não se inscreveu por não ter dentes. "Ao terceiro dia, perguntou se podia fazer. Acabou por ter um dos papéis principais. Projectava a voz. Ninguém diria que não tinha dentes. Ultrapassou a sua dificuldade. Abria a boca, ria. O grande desafio era o texto."

Nos primeiros três meses, Luísa e outros profissionais deslocavam-se à cadeia. "Queria que os actores profissionais conhecessem aquela realidade. Estão habituados a ter silêncio, garrafas de água, intervalo para fumar. Ali, toca muitas vezes a campainha: "Reclusa número não sei quê..." Não podem fazer um intervalo, têm de tomar café em copos de plástico."

Nos outros três meses, os reclusos foram ensaiar para o Cine-Teatro Constantino Nery, bem no centro de Matosinhos. "Podiam circular [pelo edifício] à vontade. Duas vezes por semana, durante aquelas três horas, eram livres. Podiam ir à casa de banho, ao café, ao terraço."

A cidade envolveu-se no projecto da directora artística do seu teatro. No decurso dos ensaios e dos espectáculos, restaurantes de Matosinhos revezavam-se para servir o jantar ao grupo. Ofereciam-lhes as refeições. Nas cadeias, o jantar serve-se às 18h. Tinham de chegar até às 19h. "Chegavam lá, tinham a comida fria. Isso era desmotivador." Ao jantar no teatro, já podiam entrar um pouco mais tarde, aproveitar melhor o tempo.

Luísa sente que fez amigos. Quando está a gozar uma saída precária, Álvaro, por exemplo, aparece para tomar um café e dar dois dedos de conversa. "Não falha um espectáculo." Na sua primeira visita, levou-lhe a primeira edição portuguesa do Cyrano de Bergerac. "Andei à procura e não encontrei. Ele sabia que eu o queria, encontrou-o num alfarrabista. Um presente lindo!" Quando vão tomar um copo à zona dos Clérigos, ninguém sabe que ele é um preso. É um amigo que está com ela. É uma pessoa que está a divertir-se. É assim que Luísa gosta que vejam os seus vizinhos que habitam aqueles três lugares murados.

acpereira@publico.pt

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