Quando Catarina pede a Costa para “desambiguar”

Para seu mérito e para sorte do Bloco e do PCP, António Costa sabe que é na ambiguidade que está o ganho.

A líder do Bloco de Esquerda acrescentou esta semana uma palavra difícil ao já de si intrincado léxico da “geringonça”. Catarina Martins propõe como santo-e-senha para a estabilidade do Governo e para a paz celestial na órbita das posições conjuntas o conceito da desambiguação. Nem mais, nem menos. O palavrão não traduz uma fórmula da filosofia ou da física quântica, mas nem por isso deixa de ser uma ideia teórica com muito pouca probabilidade de ser testada pela ciência experimental. Ninguém quer. Todos têm medo das consequências. Ao pedir a António Costa para “desambiguar a sua posição” em matéria de legislação laboral, Catarina Martins exprime apenas o desejo de algo que nem o primeiro-ministro, nem ela, nem Jerónimo de Sousa querem que aconteça. Na zona cinzenta entre aquilo que se diz e o que se faz no frágil equilíbrio da maioria, a ambiguidade é afinal o cimento que explica o sucesso e a estabilidade deste Governo.

É assim desde sempre. As posições conjuntas, assinadas entre as partes, prometiam quatro ou cinco medidas concretas e uma dúzia de teses, aspirações ou propostas ideais para a ambiguidade fermentar. O “virar de página” da austeridade jamais passou da distribuição possível dos resultados da economia, sem que alguma vez estivesse em causa a ortodoxia da Europa em matérias como o défice público. O pior indicador de investimento do Estado em décadas registado em 2016 era impossível de esconder, mas nem isso impediu o Governo e os seus parceiros de alimentarem a ideia ambígua de que esse facto era apenas uma vírgula num capítulo de uma política patriótica e de esquerda. O brutal registo de cativações poderia facilmente ser a expressão de uma política restritiva e odiosa de uma economia tutelada pelos mercados e coagida pela alta finança, mas, quer o Bloco, quer o PCP lá se entretiveram na ambígua pose de a censurar asperamente com uma face enquanto aprovavam orçamentos com a outra.

Quando Catarina Martins pede a António Costa para “desambiguar”, está a atacar a mais íntima essência do equilíbrio que tem permitido ao PS Governar e à esquerda reclamar as glórias do pretenso enterro da austeridade. Porque o fim das ambiguidades só pode ter uma consequência: o conflito aberto entre o que cada um dos partidos pensa e propõe em matérias sensíveis como a responsabilidade fiscal, a legislação laboral, o investimento público ou o papel da Concertação Social. Se essas propostas forem sérias, frontais e assumidas sem ambiguidade, torna-se muito difícil ao Bloco e ao PCP explicarem por que apoiam o Governo. E torna-se praticamente impossível ao primeiro-ministro dizer que, “quando se está bem acompanhado, não se muda de companhia”. A “desambiguação” tornaria visível aos olhos de todos a contradição entre um Governo europeísta e uma esquerda antieuropeísta, entre um PS burguês e dois partidos anticapitalistas e estatizantes.

Para seu mérito e para sorte do Bloco e do PCP, António Costa sabe que é na ambiguidade que está o ganho e não fará a vontade a Catarina Martins nem a Jerónimo de Sousa. Não desambiguará. Entre deixar de ser o que é e ceder às pressões crescentes dos seus parceiros, o PS e o Governo faz o que sabe fazer com mestria: assobiar para o lado. O problema é que se essa receita funcionou bem durante dois anos, parece ter ficado com sal ou pimenta a mais depois das autárquicas do ano passado. Quando a ambiguidade se ficava sobre se as devoluções de rendimentos aos funcionários públicos ou pensionistas, ou sobre se deviam fazer a dez ou a 100 à hora, a coisa era fácil. Agora, o que o Bloco e o PCP exigem é muito mais difícil de digerir no tradicional caldo da ambiguidade. Porque, seja no plano da legislação laboral, seja nas mudanças propostas pelo PCP nas reformas, o que está em causa não admite ambiguidade. Ou se lê nos programas de cada um, ou não lê.

No primeiro caso, o PS ainda ensaiou um leve perfume de ambiguidade ao explicar que se juntava ao PSD e ao CDS na Assembleia para chumbar o pagamento das horas extra, não por rejeição de princípio, mas apenas porque essa era uma matéria do foro da Concertação Social. Mas não saberemos até onde o Primeiro-ministro e os seus pares poderão ir se os seus parceiros esticarem a corda em nome da clareza. Se assim acontecer, ver-se-á que o muro que durante décadas separou o PS do PCP e do Bloco ainda não ruiu. Por isso, de duas, uma: ou a esquerda mais à esquerda abranda a pressão, conserva a ambiguidade, dissimula e aceita a convivência com o centrismo do PS, ou vamos viver um ano esquizofrénico. Por muito que o PSD que está por aí a aparecer seja eficaz na Oposição, se a ambiguidade acabar a história da política portuguesa ficará marcada pelo confronto entre os parceiros das posições conjuntas.

Tudo indica, de resto, que esse cenário é o mais provável. Para já, esse choque verifica-se de forma clara por interposto sindicato, como o demonstra a dura guerra de palavras entre a UGT, que sublinha o discurso de ponderação do Governo, e a CGTP, que extrema o guião escrito na Soeiro Pereira Gomes. Mas constata-se também no princípio do fim da paz social. Em cima da mesa estavam em Janeiro 144 pré-avisos de greve, mais 82% do que no início do ano passado, como noticiou o Expresso. Greves com alto poder de desestabilização, como a dos professores, estão escritas nas estrelas. Os aumentos da função pública para 2019 estão já em discussão. O Bloco vai continuar a exigir o regresso à legislação laboral anterior ao período da Troika e o PCP quer ir mais além. Tão além que estendeu esta semana a pressão à concessão de reformas integrais a quem tenha 60 anos e 40 de descontos. E quer mais investimento público, o fim das taxas moderadoras ou uma panóplia de medidas que, em nome da justiça social, estourariam num ápice a menina dos olhos do Primeiro-ministro: o controlo das contas públicas.

A corda estica porque, na longa campanha eleitoral que começámos a viver, a ambiguidade favorece quem está no poder e conduz à irrelevância quem se limita a dizer uma coisa e a votar o seu contrário. Bem pode Pedro Nuno Santos e a ala bloquista que está no PS porque é aí que se pode chegar a primeiro-ministro dizer que o país ideal nascerá quando mil geringonças florescerem. A realidade pura e dura, a natureza profunda dos partidos, as legítimas aspirações dos seus líderes e dos seus militantes tornarão claro em breve o contrário. A ambiguidade pode resistir a tudo, menos a previsões sombrias sobre resultados eleitorais. A corrida começou e a grande questão das próximas semanas é a de saber se a desambiguação vai acontecer este ano ou se teremos mesmo de esperar até Outubro de 2019 para haver eleições.

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