Geraldo Cavalcanti: o intercâmbio necessário

Personalidade de referência na história diplomática do Brasil da segunda metade do século XX e, ao mesmo tempo, poeta, ensaísta e tradutor, Geraldo Cavalcanti deslocou-se, expressamente, a Portugal para estreitar os vínculos entre os dois países. Para uma cooperação, que se deseja efetiva, em vários domínios culturais, tanto mais que é o presidente da Academia Brasileira de Letras.

A sua presença vai ser hoje assinalada na Academia das Ciências para a qual, recentemente, foi eleito por unanimidade sócio correspondente brasileiro. Além desta cerimónia, será homenageado, ao fim da tarde, pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). Em ambas as circunstâncias destaca-se o propósito de aproximar brasileiros e portugueses em objetivos comuns e, no âmbito dos países de língua portuguesa, contribuir para a intensificação do projeto da lusofonia à escala planetária.

Geraldo Cavalcanti exerceu na carreira diplomática altos cargos. Chefiou, por exemplo, as Conferências Gerais da UNESCO, as Conferências Mundiais sobre Comércio e Desenvolvimento, sobre Ciência Tecnologia e População; a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais, o Comité do Património Mundial. Defendeu e conseguiu a integração de Ouro Preto e de Olinda, no Património Cultural da Humanidade.

Consagra-se após 2001, exclusivamente, à literatura. Foi o presidente do Pen Clube no Brasil (2003/2007). Já era, contudo, o poeta d’O Mandiocal de Verdes Mãos, d’O Elefante de Ludmila e d’A Palavra. (Um poema escaldante sobre o amor desmedido de Mariana Alcoforado faz parte da sua obra.) Editado por Eduardo Portella no Tempo Brasileiro, tem sido louvado não só por este mas por outras grandes personalidades: Guimarães Rosa, Drummond, João Cabral de Melo Neto, José Guilherme Merquior. Prémio Fernando Pessoa 2000, da União Brasileira de Escritores.

A poesia, o poeta e o poema foram estudados por Geraldo Cavalcanti nos ensaios reunidos n’A Herança de Apolo. "É um empreendimento substancial, astuciosamente culto, constituído de fragmentos da lucidez matizada", na síntese de Eduardo Portella que, noutro passo, adverte: "O poema é o domicílio da poesia", (…) "a poesia não envelhece. Já o poema envelhece, está sujeito à esclerose múltipla da palavra".

Estes e outros temas são fundamentados em obras e autores desde a Antiguidade até aos nossos dias. As abonações extraídas da literatura portuguesa demonstram conhecimento incomum. Não se limita a Camões e alguns contemporâneos: Vergílio Ferreira, Namora, Saramago e Cardoso Pires. Está ao corrente dos clássicos do modernismo do Orpheu (Pessoa e Sá Carneiro) e da Presença (Régio e Torga); dos suicídios trágicos de Camilo, Antero, Manuel Laranjeira, Florbela e Eduardo Guerra Carneiro.

Examina singularidades de outros poetas que cita e comenta, o Almada Negreiros da Cena de Ódio e do Manifesto Futurista às Gerações do Século XX; a marquesa de Alorna, tradutora de Horácio; o António Manuel Couto Viana, do Avestruz Lírico; a Natália Correia d’A Defesa do Poeta, no qual se insere (tal como César Vallejo, Calderón de la Barca e Drummond) entre os que consideram uma sina a condição do poeta.

Ainda se detém no grande e injustamente esquecido António Feijó, no poema Folha Branca, tema mais tarde retomado por João Cabral: "Toda a manhã consumida/ como um sol imóvel/ diante da folha branca." Todavia, o poema de Feijó — recorda Geraldo Cavalcanti – conduziu o crítico António Cândido a reconhecer Folha Branca um paradigma do limite contra o qual os poetas lutam.

Geraldo Cavalcanti ainda se evidencia como tradutor de poesia. A tradução d’O Cântico dos Cânticos antecedido de extensa e erudita introdução histórica e literária é excecional. Desmonta a tese da autoria do Rei Salomão. Percorre as interpretações que classificam o poema simbólico ou naturalista, erótico ou místico, hino litúrgico ou o epitalâmio, mensagem libertária feminista ou, simplesmente, a extraordinária exaltação do amor físico.

No entanto, a maioria das traduções — distinguida com grandes prémios internacionais — circunscreveu-se às obras dos poetas: Montale, Quasimodo, Ungaretti, Umberto Saba, Attilio Bertollucci e do escritor Blaise Cendrars. Respeita o modo de expressão do autor, o estilo, a marca, tudo o que confere identidade própria. Para Geraldo Cavalcanti, as palavras pesam-se como diamantes. Nelas não há o mais, nem o menos. Há o preciso, o exato. Mas capta o fluido magnético que, em cada palavra, por vezes em cada sílaba, transmite ou sugere as pulsões da angústia, a intimidade afetiva, as metamorfoses da paisagem.

Estamos perante o diplomata de carreira que, na Europa, nas Américas e no Oriente, chefiou e integrou departamentos jurídicos de relações internacionais, comissões de assuntos políticos e económicos, programas de planeamento estratégico, organismos internacionais da proteção e difusão dos idiomas e culturas latinas.

Mas também representa o poeta e tradutor, cuja obra feita de heranças e descobertas é terra lavrada de sentimentos e reflexões. Escrita que surge no ímpeto da luz que desoculta, recria e perpetua as palavras que emergem dos elementos primordiais dos três reinos da natureza.

Jornalista, sócio da Academia das Ciências

Sugerir correcção
Comentar