Marcelo: “Estamos a gerir o dia-a-dia, a olhar para o curto prazo e não para o médio e longo prazo”

Um governo que nasce sob os efeitos do cansaço de seis anos de poder, uma guerra desencadeada depois da pandemia e uma sucessão de casos estão a comprometer as expectativas do Presidente

A pandemia, primeiro, e a guerra na Ucrânia depois travaram a ambição de reconstruir e reinventar o país, diz o Presidente. Com a crise social a alastrar, a maioria que nasceu “cansada” e “requentada” gere como a generalidade dos governos europeus: a curto prazo. O retrato do país captado por Marcelo Rebelo de Sousa no sétimo aniversário da sua presidência, numa entrevista ao PÚBLICO e à RTP.

Há dois anos, no seu segundo discurso de posse, afirmou que a “justiça social não se satisfaz com a contemplação dos números” e que deve “chegar às pessoas e aos seus direitos”. Com a inflação a galopar, o Governo está demasiado focado nos números?
O que aconteceu desde 2021, em que ficou interrompida uma legislatura, é que houve um longo período eleitoral, longo de mais. Nasceu uma maioria requentada. As maiorias que não nascem de novo, que nascem com um governo com seis anos — um pouco como a segunda maioria do professor Cavaco Silva —, são maiorias cansadas. Demorou muito tempo a formar-se um governo, porque houve recurso [ao TC por causa dos votos da emigração] e, portanto, o Governo arrancou quase três meses depois das eleições legislativas, já com uma guerra em curso, com um orçamento por aprovar, com uma orgânica pensada para um período sem guerra, concentrando no primeiro-ministro e na Presidência pastas como, para além da Europa, a transição digital, a modernização administrativa, a gestão dos fundos. Veio a guerra. Durante seis meses, presidentes e primeiros-ministros trataram da guerra. Guerra, guerra, guerra e energia. Eram mais urgentes ajudas sociais imediatas.

Isto durou até ao fim do Verão e, portanto, o Governo entra em actividade em Setembro. Em Setembro há a mexida na Saúde, há o novo pacote grande de ajudas sociais. Até Setembro há um tempo perdido e que depois se prolongou com as várias vicissitudes internas do Governo fruto destas circunstâncias.

Está a falar dos “casos e casinhos”, como lhe chamou o primeiro-ministro?
Exactamente, mas que são resultado disso mesmo. Na Economia, foi o desajustamento entre ministro e secretários de Estado vindos do anterior. Na Presidência do Conselho de Ministro, foi a necessidade de reforçar a componente política. Houve um secretário de Estado que depois não pôde ser. Há um caso que, entretanto, ocorreu que é o caso TAP que obriga a mexidas muito importantes. Porventura, o ministro mais importante a seguir ao primeiro-ministro tem de tomar a iniciativa de sair pelo seu pé [Pedro Nuno Santos]. Portanto, podemos dizer que praticamente um ano foi perdido numa legislatura um pouco patológica. Foi um ano praticamente perdido.

Foto
Daniel Rocha

Até que ponto esse tempo perdido compromete o seu apelo de 2018 de que Portugal precisa de se reinventar, não apenas de se reconstruir?
É evidente que sim, porque uma das consequências foi o atraso da segunda fase do PRR. As consequências da guerra, do aumento dos preços, a inflação, tudo isso teve consequências económicas, financeiras e sociais que prejudicaram a coesão social que se sonhava ser possível no pós-pandemia. Prejudicaram o reconstruir, o reinventar. Estamos a gerir o dia-a-dia e, portanto, a olhar para o curto prazo e não para o médio e longo prazo.

Os números da economia de 2022 são melhores do que se esperava, mas os portugueses estão a sentir os efeitos da inflação e estão na rua, estão em protesto, estão descontentes e revelam sinais de inquietação.
Os números foram melhores do que se esperava. Vínhamos de muito baixo do ano anterior em termos de crescimento. Termos crescido largamente, porque as exportações cresceram e o turismo cresceu mais depressa e mais do que se esperava, dá-nos um número de crescimento que já não é repetível em 2023. Em segundo lugar, controlou-se o défice. Agora é evidente que um tempo de guerra, um tempo de inflação, isso significa naturalmente o sacrifício de mais pobres, dos mais carenciados, mas também o aumento dos juros, o que apanha a classe média, média-média e média-baixa. É evidente que a realidade económica e social depende muito de como correr a guerra e como correr a evolução da inflação e da economia.

Depende mais da guerra do que do Governo?
Obviamente, dos governos depende da forma como lidam com a realidade. Mas nós somos uma economia aberta, dependemos muito da Europa. Se a Alemanha e a UE, por exemplo, não arrancar tão depressa como se esperava, não é Portugal que vai arrancar sozinho. Não temos essa ilusão e, portanto, há uma responsabilidade sempre dos governantes, que terão de encontrar as soluções para compensar, nessa gestão do dia-a-dia, o que não está a correr bem. Só que aqui o primeiro-ministro e eu temos leituras um bocadinho diferentes da realidade. O primeiro-ministro olha para o lado cheio do copo, eu olho para o lado vazio do copo.

Fala-se da necessidade de o Governo desenhar um novo pacote de ajudas. Acha que repetir um pagamento único faz sentido? Ou acha que este novo desenho de políticas sociais requer outro tipo de conceitos, mexendo, por exemplo, em políticas fiscais?
Em primeiro lugar, em relação à inflação há uma componente que é mais facilmente explicável, que é o efeito directo do aumento do custo da energia. Depois há uma outra parte em que se fica com a sensação de que há um aproveitamento da conjuntura...

Refere-se aos bens alimentares?
... por quem diz que isto é uma oportunidade única, uma oportunidade não repetível, não sabe quanto tempo dura, então deixa fazer incidir no custo dos produtos aquilo que é um processo aparentemente global. Começou, e bem, um processo mais sistemático de fiscalização. E é bom que se apure aquilo que é essa segunda componente da inflação difícil de explicar.

Foto
Daniel Rocha

Há uma parte da inflação que já vinha de trás, deu um galope com a guerra. Mas há uma parte em que se tem a sensação que ultrapassa o que seria legitimamente o efeito directo ou indirecto da guerra. Agora, como encarar isso? Depende muito da evolução da economia e da evolução social.

Eu acho que os próximos meses vão ser muito sintomáticos sobre isso. Quer dizer: será que, como se esperava até há muito pouco tempo, que é a perspectiva do copo meio cheio, a inflação vai diminuindo? Acabará por chegar a meados do ano e, sobretudo no Outono, a valores que não são os de antigamente, mas é metade do que aquilo que atingiu? Será que há um sinal de que o crescimento vai além do que se pensava e que pode caminhar até perto de um ponto ou 2%? Sim ou não? Disto vai depender o tipo de intervenção em termos de ajudas sociais.

Um governo de direita faria uma coisa diferente, pensando que era com mais recurso aos privados — não é que não seja possível reintroduzir PPP onde seja fundamental. Teria outra política, mas também está por provar que essa política resolvesse o problema de uma população envelhecida e pobre e que tivesse meios para isso. Quando foi da pandemia, era preciso recorrer ao privado e o privado foi impecável. Demorou-se tempo de mais no público a recorrer ao privado. Mas o privado não tinha as camas que se pensava. Portanto, o problema também é esse. Logo, todos somados somos poucos. Temos de somar esforços, mas a coluna vertebral é o SNS. E o SNS, ao ser repensado, tem que ser repensado rapidamente.

Sugerir correcção
Ler 7 comentários