Depois de Jéssica, ainda vamos a tempo de proteger outras crianças

De nada adiantam os insultos e a confusão gerada no funeral das crianças. É preciso, sim, impedir que a violência cause mais uma vítima e, para isso, é preciso denunciar.

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@PETERCALHEIROS

Portugal assiste a mais uma tragédia com a morte precoce de Jéssica Biscaia, uma menina de apenas 3 anos, alegadamente agredida violentamente em casa de uma família a quem a mãe devia dinheiro, colocando a descoberto um problema com dimensões preocupantes e transversal à nossa e a outras sociedades — os maus-tratos infantis.

A morte de uma criança causa sempre choque e indignação, sobretudo, quando envolve violência. É revoltante. Perguntamos porquê e como é possível que ninguém protegesse aquela criança?! Surgem as acusações ao sistema judicial e à CPCJ, mas independentemente de existirem ou não falhas nestes sistemas, nós enquanto sociedade também falhamos e é com isso que também temos de lidar.

Esta e outras situações semelhantes devem fazer-nos repensar o funcionamento da nossa sociedade e a forma como esta permite que os maus-tratos continuem a existir. A responsabilidade da denúncia cabe a todos os cidadãos, porém, o medo e a indiferença, fingindo que não se vê nem se ouve, por vezes prevalecem e impedem que casos de violência contra as crianças sejam travados antes de prejudicarem seriamente a integridade física e psicológica das suas vítimas.

De nada adiantam os insultos e a confusão gerada no funeral das crianças. É preciso, sim, impedir que a violência cause mais uma vítima e, para isso, é preciso denunciar. Quem assiste ou suspeita destas situações, quer seja familiar, vizinho, professor, amigo, etc., tem o dever de o fazer, pois a revelação pode retirar uma criança de uma situação de negligência e de violência e integrá-la num ambiente mais adequado potenciando um desenvolvimento normativo, não obstante as adversidades vivenciadas.

As consequências dos maus-tratos

Quanto mais intensos e continuados forem os maus-tratos, mais a criança está em comprometimento desenvolvimental. Nesta situação, a criança está exposta a stress diário e tende a centrar os seus recursos nas situações ameaçadoras, deixando de atender às experiências de aprendizagem e sócio-emocionais. A literatura tem demonstrado claramente os efeitos negativos e duradouros do maltrato no percurso desenvolvimental das crianças e dos jovens. Falamos em atraso desenvolvimental, em problemas de comportamento, em dificuldades emocionais, em desajustamento social e em insucesso escolar ao longo da infância e da adolescência, sendo esta última, uma fase em que começam a aparecer com mais força problemas de saúde mental, comportamentos delinquentes, abuso de substâncias e abandono escolar.

O maltrato acarreta ainda como consequência o risco da perpetuação do ciclo de violência através da transmissão geracional de violência, ou seja, este tipo de práticas é mantido de geração para geração.

Há também um lado do maltrato que toca invariavelmente toda a sociedade, dado os elevados custos que acarreta. Estes custos incluem, por exemplo, os cuidados de saúde mental, a justiça criminal, a assistência às vítimas e o tratamento dos ofensores.

A prevenção é uma medida fundamental

As respostas de prevenção, sinalização e intervenção precoce neste problema são a chave. Deve ser feito um investimento em termos de prevenção e de sensibilização da comunidade e formação de técnicos que se cruzam com estas famílias ao longo do seu ciclo de vida, quer seja nas escolas, em centros comunitários, centros de saúde ou desportivos.

Os profissionais de saúde e os professores encontram-se, por exemplo, em posição privilegiada para sinalizar, e, neste sentido, precisam de ser preparados para o reconhecimento dos fatores de risco, dos sinais e dos sintomas associados ao maltrato infantil de forma a conduzir pais e crianças aos serviços e técnicos de apoio social especializados. Urge uma reflexão cuidada sobre como preparar estes profissionais através do desenvolvimento de programas e de acções especializadas que os provejam de informação para saber identificar e agir em segurança.

Também a sociedade em geral deve ser informada e sensibilizada sobre o tema da violência contra as crianças, desmistificando mitos sobre a infância e sobre os direitos das crianças e investindo na recriminação do uso da punição física como estratégia educativa de forma a fazer emergir a mudança de atitudes. É importante dar conhecimento sobre o maltrato e sobre o desenvolvimento infantil, desconstruir crenças erradas e ensinar a atuar perante um quadro de violência contra as crianças, encorajando a denúncia.

Os media e os serviços existentes na comunidade, como as paróquias e as associações desportivas são uma boa forma de veicular campanhas que esclareçam o que é o maltrato infantil e se mostrem contra o uso da violência contra qualquer pessoa.

A parentalidade deve ser alvo de especial atenção junto daquelas famílias que estão em maior risco de incorrer em maltrato às crianças, dado estarem expostas a condições adversas de vida que as colocam em maior risco de um resultado negativo. Neste sentido, os programas de treino parental são outra medida para potenciar as melhores condições para que os pais exerçam a sua parentalidade de forma capaz e afetuosa, respeitando os marcos desenvolvimentais das crianças e os seus direitos e reduzindo as práticas parentais coercivas.

Naturalmente, para que surja uma nova postura na população é preciso que as pessoas sintam que o sistema de proteção infantil representa uma resposta funcional e eficaz, reforçando que vale a pena proteger as crianças e denunciar quem maltrata.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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