A morte da pequena Jéssica: onde param os vizinhos?

Nas CPCJ e nos tribunais de família não existem bolas de cristal que permitam adivinhar se as crianças estão ou não em perigo. O dever de vigiar e proteger as crianças é um dever da comunidade e cabe a todos e cada um de nós reportar situações de perigo de que tenhamos conhecimento e em que estejam envolvidas crianças.

E eis que, uma vez mais, temos um país em choque com a morte brutal de uma menina num contexto ainda por esclarecer em que, alegadamente, uma mãe terá deixado a filha aos cuidados de terceiros a quem devia dinheiro. Um episódio de miséria moral, na expressão feliz do Presidente da República.

Nestas coisas, como é habitual, tendemos a culpar o Estado, as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), o Ministério Público, o tribunal, enfim, os “outros”. Esquecemo-nos de que esta menina e a sua mãe não viviam em isolamento, mas estavam integradas numa comunidade. Tinham familiares e vizinhos, frequentavam cafés e lojas e conviviam com outros membros da comunidade com quem se cruzavam diariamente.

São estas pessoas, estes vizinhos e familiares, que estavam em melhores condições para avaliar se a mãe da Jéssica tinha capacidades parentais para ter a menina a seu cargo, tanto mais que os seus outros filhos, segundo refere a comunicação social, lhe tinham sido retirados. São estes vizinhos e familiares que estavam em melhores condições para avaliar se a pequena Jéssica estava ou não em perigo. E, tanto quanto se sabe, nenhum deles terá denunciado qualquer situação de perigo.

As CPCJ, o Ministério Público e os Tribunais apenas podem agir se lhes forem reportados factos que reclamem a sua intervenção. Se não existirem denúncias provenientes das redes de saúde e escolares, das entidades policiais ou da rede comunitária, então essas entidades são impotentes para agir.

A fazer fé no que refere a comunicação social, a situação da menina foi reportada à CPCJ apenas no âmbito de episódios de violência doméstica que teria presenciado. O caso terá depois passado para o tribunal de família e menores em virtude de os pais da criança não terem consentido a intervenção da CPCJ. Todavia, com a separação do casal, a situação de perigo reportada ao tribunal — a violência doméstica — já não existiria e o processo veio a ser arquivado. O tribunal, segundo se sabe, não teria conhecimento de outros fatores de risco que justificassem a tomada de outras medidas. A comprovar-se esta versão dos factos, nada parece haver a censurar à CPCJ ou ao Tribunal de Família e Menores de Setúbal.

Nas CPCJ e nos tribunais de família não existem bolas de cristal que permitam adivinhar se as crianças estão ou não em perigo. O dever de vigiar e proteger as crianças é um dever da comunidade e cabe a todos e cada um de nós reportar situações de perigo de que tenhamos conhecimento e em que estejam envolvidas crianças.

É tempo de acabar com este silêncio ensurdecedor e denunciar os casos de crianças em risco de que temos conhecimento nas nossas comunidades. Que a trágica morte da pequenina Jéssica nos sirva de lição.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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