Ainda há um longo caminho a percorrer do fim dos manicómios à integração na sociedade, reconhecem especialistas

Com o objectivo de abrir a sétima arte “a novos mundos”, o Cinema São Jorge juntou três especialistas em saúde mental e o realizador do documentário italiano Matti da Slegare.

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Muitos hospitais, como o Miguel Bombarda, em Lisboa, viram as suas portas fecharem-se NUNO FERREIRA SANTOS/Arquivo

A saúde mental chegou ao Cinema São Jorge, durante a 15.ª Festa do Cinema Italiano, que terminou neste domingo, em Lisboa. A conversa aconteceu no dia anterior e teve como pano de fundo o legado deixado pelo psiquiatra Franco Basaglia e que ficou gravado no documentário Matti da Slegare (1975), de Silvano Agosti e Marco Bellocchio. Rodado em Itália, o filme realça o contributo do psiquiatra para a integração dos doentes mentais na sociedade em vez de serem abandonados em manicómios. Este movimento de desinstitucionalização também chegou a Portugal, mas ainda há muito trabalho a fazer, reconhecem os especialistas convidados.

A ideia, então revolucionária, de Franco Basaglia, e que é reflectida no documentário, “foi deixar estas pessoas sair dos hospitais psiquiátricos”, instalando-as em apartamentos geridos pela autarquia, em grupos de três a cinco pessoas, explica o realizador Silvano Agosti, amigo do psiquiatra, durante o encontro em Lisboa. “A técnica [de Basaglia] revelou-se possível — no fundo, juntar cinco doidos numa casa é a mesma coisa que acontece em todas as outras casas —, e foi assim que desapareceram 108 manicómios em Itália, que eram autênticos locais de tortura e segregação”, sublinha o realizador.

O documentário, que conta a história do instituto psiquiátrico de Colorno, na província de Parma, teve um papel importante no movimento de desinstitucionalização, numa altura em que o tema ainda era tabu, de tal modo que o realizador correu “o risco de ficar fechado num hospital psiquiátrico”, brinca o próprio.

O pensamento de Franco Basaglia deu azo a uma reforma na saúde mental que se espalhou pelo mundo fora e Portugal não foi excepção. Por cá, o “impacto do movimento da psiquiatria democrática foi imenso”, admite o professor e psicólogo clínico José Ornelas, um dos convidados. A pedido do realizador — que voltou ao cinema lisboeta no domingo, com o filme D’amore si vive (1983) —, a conversa aconteceu nas escadas, à beira do palco, e não nos cadeirões alinhados em cima do palco.

É por altura do 25 de Abril de 1974 que se começou a verificar a saída dos doentes, ou pessoas “subnormais” como são designadas no documentário, dos hospitais psiquiátricos portugueses. Mas o processo não foi “tão estrategicamente pensado” como em Itália, reconhece José Ornelas. “Só em 1989 é que surge a primeira residência comunitária com cinco pessoas que saem do Hospital Júlio de Matos [em Lisboa] e só em 2011 é que encerramos as primeiras instituições — o Hospital Miguel Bombarda, o Hospital de Lorvão e a Quinta de Arnes [em Coimbra].”

Para Beatrice Sacchetto, investigadora e coordenadora do Centro Comunitário da Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS), uma organização que presta apoio a pessoas com doença mental, ainda há um longo caminho a percorrer: “A desinstitucionalização já passou por muitas etapas e agora estamos na fase de lhes dar voz [às pessoas com doença mental], de tentar que elas possam reivindicar os seus direitos.”

Importante é que haja uma “integração efectiva” na sociedade, que lhes viabilize “um estatuto de cidadania, uma rotina, um igual acesso ao trabalho e à educação”, continua a investigadora. E, aliado a isto, urge ainda promover a “diversidade humana” de forma a combater o estigma social.

Existem leis, mas faltam recursos

O problema, nota Luís Sá Fernandes, investigador na área da saúde mental, é que “ainda persiste a ideia de que a pessoa precisa de recuperar para poder ir para a comunidade”, apesar de já se saber “que esta recuperação só é conseguida se a pessoa tiver direito a ser independente e a praticar a sua cidadania”.

No entanto, o que levanta mais preocupações é o desfasamento que se verifica entre a teoria e o que é aplicado na prática, diz o investigador, e aponta que se em Portugal, há uma lei de saúde mental, “cheia de bons princípios e que quer promover a participação destas pessoas”, faltam recursos para isso acontecer. “Having rights but no resources is a cruel joke [ter direitos, mas nenhuns recursos, não passa de uma piada cruel”, em tradução livre]”, cita Luís Sá Fernandes.

Como exemplo deste desfasamento pode ser apontada a actual integração das crianças com necessidades educativas especiais nas escolas, aponta José Ornelas. “Temos uma lei recente, com três ou quatro anos, que defende todos os princípios da integração nas escolas dessas crianças, mas há muitas coisas que não estão a seguir essa tal lei”, admite. “Essas crianças muitas vezes estão na escola, mas em salas à parte ou então em programas especiais para lhes dar apoio de atenção estimulada”, denuncia.

Para o realizador Silvano Agosti, o tema da institucionalização é um problema que se espraia por vários campos e que afecta a sociedade de uma forma profundamente estrutural. Relativamente às escolas, é mesmo peremptório ao afirmar que estas instituições são apenas “uma das prisões que o poder criou para aprisionar o ser humano”, onde, ao longo de 12 anos, “uma criança só aprende que reis existem”. E deixa uma pergunta no ar: “E se as crianças, em vez de irem para a escola, fossem brincar para o parque?”

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