Vivemos bem com o pântano na Relação de Lisboa?

Não precisamos apenas de sindicâncias, nem de inquéritos, nem de processos para que se tomem medidas já

Como a água que aquece lentamente, a Justiça portuguesa foi acumulando sinais de esclerose e de perdição que incomodavam muita gente mas não queimavam ninguém. As histórias de Fátima Galante, Rui Rangel e do anterior e actual presidentes da Relação de Lisboa atingiram o ponto de fervura que torna a situação insustentável. O país precisa de Justiça, hoje mais desesperadamente do que nunca, e a Justiça desfaz-se a si própria em negociatas, em remunerações ilegais e em sorteios que falseiam a sua exigida neutralidade e transparência. Não é caso para desacreditar nem lançar sobre todos os magistrados o labéu da venalidade e da indignidade para o exercício de funções de soberania. Mas basta a suspeita de que num corpo virtuoso pode haver uma infecção como a que o PÚBLICO tem revelado na Relação de Lisboa para que seja necessário mais do que os habituais paninhos quentes com que o país arrasta os problemas sem os resolver.

O caso é gravíssimo e justifica a indignação e o alarme que o eurodeputado Paulo Rangel deixou nas páginas deste jornal esta semana, ao dizer “Não, não e não! Toda a indignação é necessária: não podemos viver com esta suspeita. Diria mais, diria mesmo: em democracia não podemos sobreviver com ela”. Mas se no momento em que esse texto foi escrito as suspeitas se limitavam à manipulação do sorteio na distribuição dos processos, depois soubemos da utilização de um espaço do Tribunal da Relação para uma sessão de justiça privada e suspeitamos que entre o actual e o anterior presidente desse tribunal haja práticas graves que se repetem e conexões que legitimam o temor da concertação. É grave dizê-lo, mas não precisamos apenas de sindicâncias, nem de inquéritos, nem de processos para que se tomem medidas já. O juiz Orlando Nascimento não pode continuar no cargo.

Nada indica, porém, que a revelação pela imprensa de factos não contestados possa retirar a classe política ou as próprias instâncias da magistratura do torpor habitual da água tépida. Com a digna excepção do Sindicato dos Juízes, a manipulação de sorteios ou o uso de lugares públicos para obter receitas privadas parece ter entrado na longa lista de episódios da normalidade perversa a que nos habituámos. Não ouvir o Governo ou mais juízes prestigiados a dizer basta e a exigir responsabilidades há-de ficar bem no formalismo da presunção da inocência ou dos respeitinhos burocráticos que higienizam acções deploráveis. É exactamente entre esses silêncios que germina a revolta dos cidadãos contra os poderes democráticos e fermenta a extrema-direita que até já sonha com Belém.

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