Embuste do século

O “Acordo do Século” é um exercício de arrogância de Trump e Netanyahu, terraplanando resoluções da ONU e normas de direito internacional.

Foram precisos três anos para ver a luz do dia, mas estava escrito desde o início. O “Acordo do Século”, assim foi nomeado por Donald Trump, é o plano apresentado para supostamente resolver o conflito israelo-palestiniano, mas foi feito à medida dos interesses israelitas. É mais uma provocação que serve os propósitos de salvar políticos em apuros e reduz todo um povo a uma caricatura.

Não é um plano, porque não tem qualquer viabilidade de realização e não prepara o caminho para a paz. Também não é um acordo, pois os palestinianos não participaram na elaboração de um documento feito de forma unilateral. É uma imposição ao povo palestiniano, reconhecendo as ocupações de colonatos recentes, atestando-os como definitivos.

É a fuga em frente de dois presidentes em apuros. Trump foge ao impeachment, perseguido por provas cada vez mais incontestáveis e testemunhas que dão corpo à acusação. Já Benjamin Netanyahu foge ao seu fim, à derrota nas próximas eleições e às suspeitas de corrupção das quais é agora oficialmente acusado. Quando a destituição aperta, o oportunismo desperta: mais um jogo político feito à custa de um povo.

Trump promete a futura existência de um Estado palestiniano com base num mapa que nem para queijo suíço serve, tal a quantidade de buracos que apresenta. Recusa a continuidade territorial do futuro Estado palestiniano, mantendo Gaza separada da Cisjordânia, indo ao caixote do lixo repescar a ideia de uma estrada/túnel para ligar as duas regiões.

Coloca o vale do rio Jordão sob ocupação israelita, usurpando este terreno que é fundamental para a atividade agrícola da Palestina. Já na Cisjordânia, o corte de território seria de 30% da área. Como se a proposta não fosse suficientemente absurda, sugere uma compensação à Palestina com a atribuição de uma zona desértica junto à fronteira com o Egipto.

Reconhece os colonatos que foram estabelecidos em território palestiniano como pertencendo a Israel, recusando o direito de regresso dos refugiados palestinianos às suas casas de que foram expulsos. Já as águas territoriais e o espaço aéreo continuariam sob soberania israelita. Ainda há mais: o “novo Estado” também não teria controlo de fronteiras nem forças militares.

A proposta é mesmo esta: um novo Estado palestiniano sem recursos essenciais como a água, reduzido no território útil e com uma soberania descafeínada. Quer dizer, mesmo falar-se em “Estado” é exagerado. A proposta de Trump e Netanyahu fica pendente de “combate ao terrorismo” e o fim da “instigação” contra Israel, o que quer que isso signifique nas mentes destes políticos perversos.

Outro dos assuntos mais importantes em disputa é Jerusalém. O reconhecimento desta cidade como a capital indivisível do Estado de Israel já Trump o tinha feito, rompendo com a deliberação internacional que o impedia. Agora, confirma essa intenção mas promete aos palestinianos que Jerusalém também será a capital do seu Estado. Novamente, há má-fé nesta promessa, pois a parte que quer entregar aos palestinianos é na periferia da cidade, o que é absurdo. Aliás, o que falta explicar da proposta só mostra que o ridículo não mata, tal o tamanho do disparate: Trump propõe que os palestinianos resolvam o problema mudando o nome desta periferia, passando a chamar Al Quds ao local, o nome árabe de Jerusalém. Descaramento não falta, como se percebe.

Se está a pensar como poderia a proposta ser mais insultuosa, eu explico. O plano de Trump propõe pagar aos palestinianos para aceitarem a proposta. Sim, é verdade, Trump resume sempre tudo a dinheiro e julga que a humilhação de um povo se consegue com um punhado de dólares. A resposta não se fez esperar: Mahmoud Abbas, o presidente da Autoridade Palestiniana, disse que “Jerusalém não está à venda e os nossos direitos não estão à venda”.

O “Acordo do Século” é um exercício de arrogância de Trump e Netanyahu, terraplanando resoluções da ONU e normas de direito internacional. É carta branca para a próxima anexação do vale do rio Jordão e mais um rastilho para a guerra. Quem quer a paz, não semeia a guerra.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 3 comentários