Do Prado ao Prato: a estratégia da ONU para reduzir emissões dos sistemas alimentares

FAO apresenta plano para reduzir a emissão de gases com efeito de estufa na agricultura. Este passa pela utilização de energia limpa, recuperação dos solos e diminuição dos químicos e desperdício.

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Os sistemas alimentares (métodos de cultivo, uso de fertilizantes, armazenamento, transporte e resíduos) são responsáveis por quase um terço das emissões mundiais de gases com efeito de estufa Reuters/Jim Young

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) apresentou uma primeira estratégia para a redução das emissões de gases com efeito de estufa na agricultura. A medida, dada a conhecer na cimeira do clima COP28, suscitou um debate focado na partilha do peso decorrente da mudança ecológica.

Os sistemas alimentares — dos métodos de cultivo e uso de fertilizantes ao armazenamento, transporte e resíduos — são responsáveis por quase um terço das emissões mundiais de gases com efeito de estufa. Enquanto alguns peritos agrícolas apelam ao fim dos fertilizantes e outros produtos químicos — cuja produção depende fortemente dos combustíveis fósseis —, outros afirmam que os países mais pobres precisam deles para melhorarem os baixos rendimentos das suas culturas.

Mas o novo plano quer acabar com a fome e a subnutrição sem violar o ambicioso objectivo do Acordo de Paris: que quer limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius. Neste sentido, as medidas propostas visam um simultâneo aumento da produtividade das explorações agrícolas e uma menor emissão de metano, dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa, possível através da utilização de energia limpa e da recuperação dos solos e das pastagens, mas também da redução dos produtos químicos e do desperdício alimentar.

Transição justa na agricultura

A estratégia propõe uma “transição justa” na agricultura, fazendo uma distinção entre as acções dos países ricos e pobres, em prol de uma “melhor eficiência” e “reequilíbrio global” dos recursos para a agricultura e abastecimento alimentar. Assim sendo, os países ricos devem reduzir o elevado consumo de alimentos de origem animal para que os países em desenvolvimento possam aumentar o seu consumo sem prejudicar o clima e a natureza.

Este plano é o primeiro de um conjunto de estratégias que a FAO irá revelar em três cimeiras anuais sobre o clima. Após esta visão global, dever-se-á incidir no melhor funcionamento dos sistemas alimentares a nível nacional e regional.

Emile Frison, do Painel Internacional de Peritos em Sistemas Alimentares Sustentáveis, saudou o plano e o “ênfase na transição justa”, mas acrescentou que este fica aquém, já que se concentra em melhorias do “defeituoso” sistema alimentar actual. “É pouco provável que estas propostas de eficiência sejam suficientes para nos tirar do caminho da poluição, dos combustíveis fósseis e da fome elevada em que nos encontramos”, afirmou o especialista em conservação e biodiversidade.

Já Patty Fong, directora do programa da Aliança Global para o Futuro da Alimentação — que reúne quase 30 fundações filantrópicas (cuja finalidade não é a obtenção de lucro) — afirmou que para tornar os sistemas alimentares verdadeiramente sustentáveis seria necessário um compromisso para eliminar gradualmente os combustíveis fósseis ao longo de toda a cadeia de valor, desde a exploração agrícola até à mesa. No entanto, o roteiro apela a uma menor utilização de fertilizantes através de uma maior eficiência, em vez de uma mudança generalizada para práticas agrícolas sustentáveis, observa.

Também Aditi Mukherji, do CGIAR (Grupo de Consulta para a Investigação Agrícola Internacional), afirmou que as soluções devem ser específicas ao contexto, já que a intensificação sustentável da agricultura é necessária nas regiões mais pobres. Em muitos países de baixo rendimento, a maior eficiência agrícola resultaria numa redução das emissões, minimizando as perdas de colheitas e os resíduos pós-colheita, observou. "Mas isso não é verdade para os países de alta renda", declarou à Context News.

A luta dos agricultores indianos

Na Índia, a economia resultante da agricultura é a que mais emprega no país, apoiando a subsistência de 250 milhões de agricultores e trabalhadores. Com as alterações climáticas, está cada vez mais difícil de se viver da agricultura, o que levou ao aumento dos endividamentos, migrações e até suicídios no país.

Em geral, as preocupações com a diminuição dos rendimentos levaram ao aumento da utilização de fertilizantes químicos. Ainda assim, um número crescente de pequenos agricultores está a experimentar abordagens ecológicas que promovem métodos orgânicos, naturais e sustentáveis — cuja escala dependerá do sucesso na protecção dos respectivos rendimentos.

Apesar de saber que muitos agricultores estão a mudar para métodos de cultivo naturais, Shashikant Shukla continua a cultivar trigo e leguminosas utilizando aditivos químicos no seu meio hectare de terra, localizado no estado de Uttar Pradesh, no norte da Índia.

As suas colheitas e rendimentos têm sido esmagados por erráticas chuvas das monções, aguaceiros fora de época e ondas de calor precoces, em muito derivadas das alterações climáticas. A isto, acrescentam-se o aumento dos custos dos fertilizantes e das despesas em geral.

Estou constantemente a viver com dívidas; não tenho coragem de fazer experiências na minha exploração agrícola”, disse Shukla, que compensa as perdas relacionadas com o clima com alguns trabalhos enquanto motorista. Mesmo que tentasse cultivar trigo biológico, acabaria por vendê-lo ao mesmo preço que o convencional — e se isso levasse a uma quebra de rendimento, “ficaria de rastos”, acrescentou.

Durante os primeiros anos — e antes do aumento das colheitas —, é frequente que a mudança para a agricultura natural provoque uma queda nos rendimentos, algo que a maioria dos agricultores indianos não consegue suportar. Estes dependem das compras governamentais das suas culturas de base, como o arroz e o trigo, a preços garantidos, e raramente têm dinheiro de reserva para mudar as suas práticas sem apoio externo.

Devinder Sharma, um perito independente em política agrícola, considera que a Índia precisa de avançar para práticas agrícolas ecológicas, mas as iniciativas só vingarão se os agricultores tiverem um rendimento garantido.​

Os pequenos agricultores indianos (com quem a Context News falou) também identificaram uma série de desafios — desde a falta de acesso a sementes de boa qualidade à baixa disponibilidade de adubo natural e aos elevados custos laborais. Segundo Sharma, estas pessoas beneficiariam de um preço governamental para os produtos cultivados de forma natural, além de subsídios para a cobertura de eventuais perdas para canais de comercialização mais fortes.

O défice do financiamento climático

De acordo com os peritos, a mudança para uma produção alimentar com baixas emissões de carbono e resistente às alterações climáticas, como a prevista pelas Nações Unidas, só será bem-sucedida se se fornecer o financiamento, as infra-estruturas e a tecnologia necessária para a adaptação às condições meteorológicas extremas e adopção de práticas mais ecológicas pelos agricultores.

Um outro relatório da FAO alertou para o insuficiente financiamento da agricultura para o clima. Entre 2000 e 2021, os sistemas agro-alimentares receberam cerca de 183 mil milhões de dólares (165 mil milhões de euros), equivalentes a apenas 4% do total dos fluxos globais de financiamento climático, refere o relatório, que também observa a queda de 12% da designação anual para a agricultura, fixada, em 2021, em 19 mil milhões de dólares (pouco mais de 17 mil milhões de euros).

Nesse mesmo ano, apenas 0,3% do financiamento internacional para o clima, proveniente de fontes públicas e privadas, chegou aos pequenos agricultores — que necessitarão de mais apoio na transição para uma agricultura sustentável, de acordo com uma análise separada do grupo de reflexão Climate Focus, com sede em Amesterdão.

Para Fong, da Aliança Global para o Futuro da Alimentação, os grupos marginalizados deveriam participar na definição do processo de transformação dos sistemas alimentares globais. “Os produtores de base — em particular os pequenos agricultores, as mulheres e as comunidades indígenas — devem ser incluídos em todas as discussões”, afirmou numa declaração sobre o plano anunciado pela FAO.

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