Um polvo prova que a Antárctida Ocidental colapsou com um aquecimento de dois graus

O manto de gelo que é o local que mais está a aquecer na Terra pode desfazer-se com temperaturas dentro dos valores admitidos com o Acordo de Paris, diz estudo assinado por cientista portuguesa.

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A Costa de Graham Coast, na Península Antárctica Dados Copernicus Sentinel modificados pela ESA

Os genes de um polvo do tamanho de um lápis (excluindo o comprimento dos tentáculos) e que vive nas águas em torno do continente gelado do Pólo Sul, a cerca de um quilómetro de profundidade, revelam-nos que o manto de gelo da Antárctida ter-se-á derretido há cerca de 120 mil anos – quando a temperatura era apenas um pouco mais elevada do que é agora.

O estudo, publicado esta semana na revista Science e que tem entre os autores a cientista Catarina Silva, do Centro de Ecologia Funcional da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, mostra que o colapso do manto de gelo da Antárctida Ocidental, que nas últimas décadas é uma das zonas que mais está a aquecer na Terra, pode acontecer mesmo que se cumpram as metas do Acordo de Paris. Ou seja, se se reduzir as emissões de gases com efeito de estufa para limitar o aquecimento global idealmente a 1,5 graus, no máximo a dois graus Celsius.

“Esta questão é muito importante, porque um futuro colapso total da camada de gelo da Antárctida Ocidental pode levar ao aumento do nível global do mar de três a cinco metros”, alerta Catarina Silva, citada num comunicado de imprensa da Universidade de Coimbra.

Há indícios geológicos de que, há cerca de 100 mil anos, desabou o manto de gelo da Antárctida Ocidental – que inclui a Península da Antárctida, que se estende do Pólo Sul até à ponta da América do Sul, e está separada da Antárctida Oriental pelas Montanhas Transantárcticas. Fica entre o mar de Ross e o mar de Weddell, com o mar de Amundsen pelo meio.

Um intervalo nas eras do gelo

Nessa altura, algures entre há 129 mil e 116 mil anos, quando os primeiros Homo sapiens anatomicamente modernos existiam apenas em África, houve um período quente no nosso planeta, um intervalo em milhões de anos de eras do gelo. A temperatura média global era pelo menos meio grau mais elevada do que é hoje, quando já se sentem os efeitos das emissões de dióxido de carbono na atmosfera, reforçando o efeito de estufa (vivemos com 1,2 graus acima dos valores anteriores à Revolução Industrial).

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O polvo de Turquet guarda no seu ADN vestígios de um passado em que os gelos derreteram Louise Allcock

Nesse período interglacial, o nível do mar global era cinco a dez metros mais elevado do que actualmente, e julga-se que isso aconteceu porque o manto de gelo da Antárctida Ocidental terá desmoronado.

O derretimento do manto de gelo da Antárctida Ocidental teria permitido que as populações do polvo de Turquet (Pareledone turqueti) pudessem cruzar-se e ter descendência fértil, durante milhares de anos, até o gelo se ter formado outra vez, e as populações destes cefalópodes terem ficado isoladas umas das outras, cada uma em seu mar.

O interessante é que esse passado em que puderam reproduzir-se em comum deixou marcas nos seus genes, que permitem datar quando isso aconteceu.

“Comparámos os perfis genéticos das populações nos mares de Weddell, Amundsen e Ross e encontrámos conectividade genética que remonta ao último [período interglacial”, indica Catarina Silva, citada no comunicado da Universidade de Coimbra. “Esta conectividade genética só seria possível se ocorresse um colapso completo da camada de gelo da Antárctida Ocidental, abrindo rotas marítimas que ligaram os actuais mares. Isso teria permitiria ao polvo trocar material genético, que podemos identificar no ADN das populações actuais”, sustentou.

A equipa recolheu amostras de tecidos de 96 polvos Pareledone turqueti que foram colectados nos últimos 33 anos – a maior parte dos quais em resultado de apanha acidental por navios de pesca. Foi assim que extraíram e sequenciaram o material genético destes animais marinhos, explica um artigo noticioso na revista Science.

Avisos no ADN do polvo

Os marcadores genéticos denominados SNP (mutações genéticas pontuais, resultando da troca de uma única “letra” do ADN, que se escreve com quatro “letras” químicas: A-T e G-C) foram usados para subdividir os polvos em populações distintas. A seguir, foram construídos modelos demográficos para testar diferentes cenários de hibridização das populações, que resultassem nos padrões genéticos actuais dos polvos.

O modelo que melhor correspondeu à genética actual dos polvos de Turquet aponta para que que os animais tenham conseguido reproduzir-se entre si algures entre há 139 mil e 54 mil anos. Isto é consistente com a possibilidade de ter havido um colapso total do manto de gelo da Antárctida Ocidental nessa altura da história do planeta.

Esta descoberta traz-nos sérios avisos sobre o que se está a passar actualmente, com as alterações climáticas, pois antecipa-se que dentro de poucas décadas a temperatura média do planeta atinja valores semelhantes ao que teve no período interglacial.

Mesmo os dois graus de aquecimento admitidos pelo Acordo de Paris podem ser suficientes para o derretimento do manto de gelo da Antárctida Ocidental e a subida do nível do mar em cinco a dez metros, com as consequências que se antecipam para as zonas costeiras em todo o mundo. Mas também terá efeitos na rica biodiversidade do continente gelado, como os pinguins que estão a ficar sem o gelo de que dependem para sobreviver.

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