Alerta global: os oceanos estão em risco e mais de mil milhões de pessoas podem ser afectadas

Da subida do nível da água do mar que afectará as populações costeiras à perda de biodiversidade marinha, os oceanos estão a sofrer com as alterações climáticas, alerta o relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) divulgado esta quarta-feira. É preciso tomar medidas hoje para evitar cenários irreversíveis.

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Reuters/ANDY CLARK

Mais inundações costeiras, mais tempestades tropicais, menos biodiversidade, menos glaciares, milhões de pessoas que vivem em regiões costeiras em risco: as alterações climáticas deixam o oceano doente, afectando toda a vida na Terra – são estes os traços gerais do primeiro relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) da ONU dedicado unicamente aos oceanos e às partes geladas do planeta. Funciona como uma espécie de “diagnóstico” do impacto das alterações climáticas, com informação mais actualizada do que nunca.

O relatório, divulgado esta quarta-feira, avança que “há eventos extremos de subida do mar que são historicamente raros – acontecem uma vez por século no passado recente – que se estima que comecem a acontecer com mais regularidade – pelo menos uma vez por ano” a partir de 2050, afectando mais as regiões tropicais. E Portugal também está entre as regiões potencialmente afectadas, sobretudo quando se registam marés altas e tempestades intensas.

Os oceanos têm funcionado como uma “esponja” ao proteger a Terra dos efeitos das alterações climáticas, tendo absorvido até hoje cerca de 90% do calor em excesso – mas acabam por ser vítimas dessa absorção. Até 2100, os oceanos aquecerão até quatro vezes mais do que até hoje. E a lista de consequências é extensa: desde a subida das águas do mar à acidificação (causada pela absorção de dióxido de carbono), redução de oxigénio e aumento da temperatura das águas que põe em causa os ecossistemas. A resposta para lhes fazer frente parece simples: reduzir de uma vez por todas as emissões de dióxido de carbono e adaptar as regiões à profecia que se vai cumprindo dia após dia – ou lidar com algumas consequências irreversíveis.

O Relatório Especial sobre Oceano e Criosfera num Clima em Mudança foi apresentado na manhã desta quarta-feira, no Museu Oceanográfico do Mónaco. Está dividido em três partes: as consequências que já podem ser observadas, projecções e, por último, soluções para evitar os cenários negros que se anunciam (se nada for feito).

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REUTERS/Regis Duvignau

“O mar, o Árctico, a Antárctida e a alta montanha podem parecer distantes para muitos, mas dependemos deles e somos influenciados por eles directa ou indirectamente, de muitas formas – para o clima, para alimentação e água, para energia, comércio, transporte, recreação e turismo, para saúde e bem-estar, para cultura e identidade”, afirmou o presidente do IPCC, Hoesung Lee.

O relatório mostra os benefícios de agir – e de o fazer o quanto antes – e, ao mesmo tempo, as consequências drásticas de uma acção tardia. Os investigadores deixam claro que os oceanos “dependem criticamente de uma redução de emissões ambiciosa e urgente”, coordenada com medidas de adaptação ao mal que já está feito.

Este diagnóstico feito à “saúde” dos oceanos não é animador. Ao longo deste século, presume-se que os oceanos enfrentarão “condições sem precedentes”: continuará a haver um aumento de temperatura das águas, ainda mais acidificação, perda de oxigénio, mais ondas de calor marinhas e os fenómenos atmosféricos El Niño e La Niña tornar-se-ão mais frequentes (duas vezes mais do que o normal, tanto no melhor como no pior cenário possível).

Até 2100, “prevê-se que desapareçam muitos glaciares independentemente das emissões [de dióxido de carbono] futuras” e que os danos provocados por inundações em zonas costeiras devam aumentar de magnitude (duas a três vezes mais grave do que são hoje). Há ainda risco de “impacto severo na biodiversidade” nos ecossistemas costeiros, riscos para a saúde humana e animal, e milhões de pessoas que vivem em regiões costeiras serão afectadas pela subida das águas do mar e por fenómenos meteorológicos extremos.

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Mas é um problema de todos, como deixa claro uma das primeiras frases do relatório: “Todas as pessoas na terra dependem directa ou indirectamente dos oceanos e da criosfera”; os oceanos cobrem 71% da superfície da Terra e contêm cerca de 97% da água no planeta. Cerca de 680 milhões de pessoas vivem em zonas costeiras baixas, e estima-se que esse número possa ascender a mil milhões em 2050.

Na região do Árctico, são cerca de quatro milhões de pessoas, sendo que 10% delas são povos indígenas. Juntam-se ainda os 670 milhões que vivem em zonas montanhosas altas – todas elas ficarão em risco. “Muitas nações terão de enfrentar desafios de adaptação”, afiança-se no relatório. Além disso, “as pessoas mais expostas e mais vulneráveis são muitas vezes aquelas com menos capacidade de resposta”, alertou-se durante a conferência de imprensa.

A subida do nível médio do mar está a acontecer a um ritmo mais acelerado do que antes; só no século XX, o nível médio das águas do mar subiu cerca de 15 centímetros. “Há eventos extremos de subida do mar que são historicamente raros – acontecem uma vez por século no passado recente – que se estima que comecem a acontecer com mais regularidade – pelo menos uma vez por ano” a partir de 2050, sobretudo em regiões tropicais. E Portugal também está na mira destes eventos mais frequentes, segundo os mapas divulgados pelo IPCC.

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Isto será uma realidade tanto no melhor cenário (em que se conseguem reduzir as emissões a partir desta década) como no pior cenário (se nenhuma medida de combate às alterações climáticas for tomada). Até 2081, a subida média do nível das águas do mar pode ser de 43 centímetros (no melhor cenário) ou de 84 centímetros (no pior).

“Desde meados do século XX, a diminuição da criosfera no Árctico e em zonas montanhosas altas levou a impactos negativos na segurança alimentar, recursos hídricos, qualidade da água, saúde, bem-estar, infra-estruturas, transportes, turismo” – afectando ainda de forma considerável as comunidades indígenas. A criosfera diz respeito a todos os componentes gelados da Terra: neve, glaciares, plataformas de gelo, icebergues, gelo dos mares, lagos e rios – ou qualquer outra superfície gelada, mesmo que sazonalmente.

Também a temperatura do permafrost (solo permanentemente gelado) atingiu “níveis recorde”. Os cientistas alertam que o permafrost árctico e boreal contém quase o dobro do carbono presente na atmosfera, daí que o seu derretimento possa ser particularmente perigoso. Os cientistas do IPCC referem que o gelo presente no Oceano Árctico sofreu uma redução “sem precedentes nos últimos 1000 anos” e o gelo é cada vez mais “jovem”: entre 1979 e 2018, a presença de gelo com mais de cinco anos baixou mais de 90%.

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A subida das águas do mar foi acelerada por esta perda de gelo das calotas polares da Antárctida e da Gronelândia. Na Antárctida, a perda de gelo foi três vezes maior entre 2007 e 2016 do que tinha sido entre 1997 e 2006; na Gronelândia foi duas vezes maior. Esta aceleração na Antárctida pode “potencialmente levar a um aumento do nível das águas do mar de vários metros em poucos séculos”.

Mas a subida das águas do mar é só a ponta do icebergue – e, a este ritmo, qualquer dia já nem icebergue haverá. Está tudo ligado: a perda de gelo na Gronelândia e na Antárctida leva a que a subida do nível das águas do mar tenha acelerado nas últimas décadas – e, por sua vez, tudo isto ameaça as zonas costeiras não só pela subida das águas, mas também por haver um maior risco de tempestades tropicais e ondas de grande dimensão.

Acção dos governos “não é suficientemente rápida nem robusta”

O relatório do IPCC aponta o dedo aos governos, dizendo que o impacto das alterações climáticas no oceano e na criosfera tem uma escala temporal bem maior do que a duração dos governos e da sua capacidade de organizar medidas de prevenção e contenção, tornando difícil “que as sociedades se preparem adequadamente e respondam a estas mudanças a longo-prazo”. Diz ainda que a acção dos governos “não é suficientemente rápida nem robusta” para dar resposta aos inúmeros riscos apontados no relatório. O relatório do IPCC foi elaborado por 104 autores – 31 mulheres e 73 homens –, oriundos de 36 países, mas não conta com a participação de investigadores portugueses.

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São então apontadas medidas para ajudar a reverter a situação: a energia renovável produzida a partir dos oceanos pode ajudar na mitigação, assim como a restauração de zonas com vegetação no litoral. Outra das medidas de baixo-custo é o desenvolvimento e aplicação de sistemas de alerta em caso de cheias, assim como equipamentos à prova de inundação em edifícios localizados em zonas litorais. São ainda sugeridos realojamentos para quem vive em zonas costeiras: “Se a comunidade afectada for pequena ou no rescaldo de um desastre, pode considerar-se reduzir o risco ao fazer ‘transferências planeadas’”, realojando-as em “localidades alternativas seguras, se existirem”.

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Como dizia a paleoclimatóloga francesa Valérie Masson-Delmotte, uma das autoras do relatório, o “deslocamento de pessoas depende das escolhas que forem tomadas hoje”. O cientista alemão e também autor do relatório Hans-Otto Pörtner explicava durante a conferência de imprensa que nem todas as pessoas que vivem em zonas costeiras terão de mudar para zonas mais seguras, mas que este risco é bem elevado para quem vive em zonas baixas e em ilhas – “que já estão em risco hoje”. Algumas ilhas podem tornar-se inabitáveis, alerta-se.

Estas zonas costeiras também ficam mais propensas ao risco já que a vegetação que protege a costa de tempestades e erosão se tem vindo a perder nos últimos tempos: “Quase 50% dos pântanos e zonas húmidas em zonas costeiras desapareceram nos últimos 100 anos, como resultado da pressão humana, da subida da água do mar, do aquecimento e de eventos climáticos extremos”, lê-se no relatório.

Perda de biodiversidade

Quanto aos corais, o seu triste (e descolorido) destino parece anunciado: o relatório refere que os corais de águas quentes já se encontram em elevado risco devido às “temperaturas extremas e à acidificação do oceano”. Desde 1997 que as ondas de calor marinhas os fizeram perder a cor, degradando estes jardins coloridos do mar, importantes para a biodiversidade, para a protecção do litoral e também para o turismo. Os corais são de “recuperação lenta” e estima-se que fiquem ainda mais ameaçados – mesmo que se consiga reduzir as emissões e limitar a subida da temperatura global a 1,5ºC.

Por outro lado, as espécies marinhas são afectadas – assim como a biodiversidade existente em zonas montanhosas em altitude ou em glaciares ou em todo o lado onde antes havia neve e agora começa a haver terra. Tudo isto gera “distúrbios ecológicos” para estes ecossistemas, deixando animais e plantas em risco. Há espécies marinhas que, além de sofrerem os efeitos das alterações climáticas, sofrem também os efeitos da pesca abusiva.

Nas montanhas, tem-se registado uma diminuição do número de espécies alpinas e dependentes do frio, “aumentando o seu risco de extinção”. O mesmo acontece com as espécies polares – o aquecimento, perda de gelo e acidificação afecta os seus habitats. No Oceano Antárctico, haverá uma redução de krill – minúsculas criaturas semelhantes a camarões que são a base alimentar de inúmeras espécies marinhas, como as focas, os pinguins e as baleias.

De resto, os cientistas consideram importante estar preparado para o que nos espera e tomar medidas, mesmo havendo casos em que a redução de emissões de dióxido de carbono e o cumprimento do Acordo de Paris não devolva a vivacidade ambiental dos tempos de antanho. Certo é que “a capacidade de os organismos e os ecossistemas se ajustarem e adaptarem é mais elevada nos cenários em que as emissões são reduzidas”. Se se tentar mitigar estes efeitos negativos, os cientistas acreditam que é provável que o ritmo e magnitude das mudanças descritas seja menor – apesar do mal que já está feito.

A jornalista viajou a convite da Fundação Oceano Azul

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