Colapso de gelos na Antárctida poderá ter matado até 10 mil pinguins-imperadores

Imagens de satélite mostram que colapso de gelo terá impedido sobrevivência da nova geração de pinguins em várias colónias. Teme-se que esta observação inédita seja prenúncio do futuro da espécie.

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Um grupo de crias de pinguim-imperador (Aptenodytes forsteri) na Antárctida,Um grupo de crias de pinguim-imperador (Aptenodytes forsteri) na Antárctida Martin Ruegner/GettyImages,Martin Ruegner/GettyImages
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As colónias de pinguins-imperadores estabelecem-se no gelo marinho que se alastra da plataforma de gelo para o mar, na região da Antárctida. É aqui que os pinguins conseguem, vindos do mar, saltar para gelo firme e reproduzirem-se. Mas é também aqui que poderão estar mais susceptíveis a fenómenos de colapso de gelo, como ocorreu na Primavera passada, que lá acontece nos últimos meses de 2022.

Um novo estudo usou imagens de satélite para ver a evolução do habitat de cinco colónias daquela espécie na região do mar de Bellingshausen, na Antárctida Ocidental. Ao longo dos meses de Novembro e Dezembro de 2022, houve um colapso precoce do gelo e os sinais associados às colónias de pinguins desapareceram em quatro das cinco colónias antes da altura típica em que a nova geração de pinguins já está preparada para saltar para o mar. Ao todo, poderão ter morrido entre nove mil e 10 mil juvenis.

“Este é o primeiro incidente registado de uma falha de reprodução generalizada de pinguins-imperadores que está claramente ligado à contracção em larga escala da extensão do gelo marinho”, lê-se no resumo do novo artigo, publicado nesta quinta-feira na revista Communications Earth & Environment.

Imagens captadas perto da Estação de Investigação Rothera, na península da Antárctida, em Novembro de 2014 British Antarctic Survey

“Provavelmente, este é um sinal das coisas que estão por vir”, refere ao PÚBLICO Peter Fretwell, primeiro autor do artigo e investigador que faz análise geoespacial no British Antarctic Survey (BAS), um instituto britânico dedicado ao estudo das regiões polares do planeta.

“Como cientista é muito deprimente ver estas mudanças”, admite. “Estive em duas conferências internacionais no último mês, falei com vários cientistas que estudam os pinguins-imperadores e o sentimento sobre o futuro desta espécie é bastante sombrio.”

Na mesma altura em que as crias das colónias do mar de Bellingshausen ficavam, literalmente, sem chão, era publicado um artigo científico que analisava o risco de extinção das espécies terrestres da Antárctida, incluindo as aves marinhas que lá habitam. O prognóstico era, em geral, negativo, e particularmente pessimista para o pinguim-imperador. A investigação, então publicada na revista PLOS Biology, mostrava que aquela era a espécie mais ameaçada de todas, prevendo-se que, por volta de 2100, até 80% das colónias estivessem extintas ou com um número tão baixo de indivíduos que a sua extinção seria inevitável.

Agora, o novo trabalho mostra que tipo de fenómenos poderá deixar a espécie na situação que se prevê. Os resultados “podem representar uma fotografia instantânea de uma Antárctida futura, em processo de aquecimento, onde este tipo de eventos se torna mais frequente e generalizado, com graves consequências para a viabilidade da população de pinguins-imperadores”, lê-se nas conclusões do artigo escrito por Peter Fretwell e mais dois colegas.

Branco e castanho

Os pinguins-imperadores (Aptenodytes forsteri) são uma das espécies mais emblemáticas da Antárctida. Estas aves podem atingir os 130 centímetros e pesar entre 25 e 45 quilos. Alimentam-se de peixes, krill e lulas. Para isso, fazem mergulhos que podem durar mais de 20 minutos e atingir os 550 metros abaixo da superfície do mar, o que faz deles a ave que mergulha a maior profundidade.

A reprodução desta espécie inicia-se a partir do final de Março, quando machos e fêmeas se congregam nos gelos marinhos que se prolongam da costa do continente. Depois de as fêmeas porem um único ovo, os machos cobrem-no e protegem-no contra as temperaturas baixíssimas do Inverno antárctico. As fêmeas voltam para o mar para se alimentar e só regressam em Agosto, quando as crias eclodem dos ovos, substituindo os machos e alimentando-as.

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Uma colónia de pinguins-imperadores Christopher Walton/British Antarctic Survey

Os juvenis só se tornam independentes para viver no mar depois de as penas com que nascem serem substituídas por penas resistentes à água, entre Dezembro e Janeiro. Até lá, têm de ser alimentados pelos progenitores e estão limitados àquele habitat. O gelo marinho “onde as colónias se reproduzem tem de se manter estável entre Abril e Janeiro para assegurar que a reprodução tem sucesso”, lê-se no artigo.

No caso das colónias estudadas, essa estabilidade foi posta em causa. Os cientistas usaram imagens de satélite para analisar cinco colónias de pinguins-imperadores na região da península da Antárctida, junto ao mar de Bellingshausen: a colónia da ilha de Rothschild, da península de Verdi, da ilha de Smyley, da costa de Bryant e do ponto de Pfrogner.

São os píxeis castanhos no meio do gelo branco das imagens de satélite que denunciam as colónias de pinguins. A cor castanha é a marca do guano – o dejecto das aves – que mancha o gelo. Quando, na sequência das imagens ao longo do tempo, a marca de guano deixa de aparecer, os cientistas inferem que neve acabada de cair cobriu a antiga marca e, ao mesmo tempo, a colónia de pinguins abandonou o lugar e não produziu novo guano.

Se o gelo desabar, é difícil que a colónia se mantenha naquele local. Foi o que aconteceu. Durante a Primavera de 2022, as águas de parte do mar de Bellingshausen sofreram temperaturas anormalmente altas, fomentando a quebra dos gelos, um fenómeno que acompanhou a tendência de todo o continente. “Ao longo dos últimos sete anos, o gelo marinho à volta da Antárctida diminuiu de uma forma significativa. No final de Dezembro de 2022, a sua extensão era a menor em 45 anos de registos feitos por satélite”, de acordo com um comunicado divulgado pelo BAS.

Um pinguim-imperador adulto com vários juvenis Richard Burt/British Antarctic Survey
Dois pinguins-imperadores adultos e um juvenil British Antarctic Survey
Um pinguim-imperador adulto P. Bucktrout/British Antarctic Survey
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Um pinguim-imperador adulto com vários juvenis Richard Burt/British Antarctic Survey

A falta de gelo não acabou com o final do Verão no pólo sul. A 20 de Agosto, a extensão de gelo era apenas de 15,7 milhões de quilómetros quadrados, cerca de 2,2 milhões de quilómetros quadrados abaixo da média entre 1981 e 2022, e muito inferior ao anterior recorde mínimo, de 20 de Agosto de 2022, de 17,1 milhões de quilómetros quadrados.

Ainda são necessários muitos estudos para compreender onde é que acaba a variação natural da área anual de gelo marinho, dependente de vários sistemas climáticos da Terra, e começa os efeitos do aquecimento global e das alterações climáticas. Mas para Caroline Holmes, cientistas climática e polar do BAS que não esteve ligada à investigação, “os anos recentes de queda dos recordes de gelo marinho e do aquecimento das águas abaixo da superfície do oceano apontam para que o aquecimento global induzido pelos humanos esteja a exacerbar aqueles extremos”, diz naquele comunicado. É neste contexto que surgem as imagens do satélite Sentinela 2.

Fenómeno sem precedentes

Os cientistas observaram o colapso do gelo marinho nas colónias da península de Verdi, da ilha de Smyley e da costa de Bryant a partir de Outubro e Novembro. As manchas de guano desapareceram antes da época em que os juvenis estariam prontos para saltar para o mar. Segundo o estudo, a maioria dos juvenis não terá sobrevivido a esta situação.

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Duas sequências de imagens do colapso do gelo na costa de Bryant e na ilha Smyley. Uma circunferência delimita a pequena mancha de guano das colónias de pinguins-imperadores British Antarctic Survey

No caso da colónia do ponto de Pfrogner, onde o mar não sofreu nenhuma anomalia de aquecimento, o desaparecimento da marca do guano deu-se no início de Novembro, embora não tenha havido colapso do gelo onde estava a colónia. No entanto, o gelo marinho mais periférico quebrou-se e os cientistas suspeitam que a altura da camada de gelo que sobrou, onde a colónia estava, fosse demasiado grande para os pinguins poderem saltar e aterrar no gelo vindos do mar.

Finalmente, as imagens de satélite da colónia da ilha de Rothschild, que das cinco colónias é aquela que fica mais a norte, mostraram marcas de guano até à segunda metade de Dezembro de 2022. Embora esta colónia esteja na região do mar onde houve um aquecimento anómalo, a sua geografia e os icebergs terão protegido os gelos da região de desabarem completamente, segundo a tese dos cientistas. Por isso, parte dos juvenis terá sobrevivido.

Fazendo as contas, das cinco colónias observadas, só uma é que teve sucesso garantido na sobrevivência de uma nova geração de juvenis. No passado, já “houve caso isolados de falhas catastróficas de reprodução [de colónias] devido à perda rápida de gelo”, lê-se na discussão do artigo. “No entanto, até agora, não tinha havido um registo de falha generalizada da reprodução de pinguins-imperadores.” Por isso, esta é uma observação “sem precedentes”, defendem os autores.

Ao todo, estima-se que existam cerca de 50 colónias de pinguins-imperadores na região da Antárctida e 265 mil pares reprodutores. Até 2009, o estatuto que a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês) dava para esta espécie era de pouco preocupante devido ao número de animais e à estabilidade das colónias que não estavam, aparentemente, ameaçadas.

Mas em 2012 o estatuto da espécie passou para quase ameaçada e aí permaneceu desde então. A razão são as alterações climáticas. “No fim do século XXI, sob os níveis correntes de emissões de dióxido de carbono, prevê-se que mais de 80% da população esteja perdida, mas a maioria das mudanças da prevalência do gelo marinho só está prevista iniciar após 2050”, lê-se na avaliação mais recente da IUCN para aquela espécie, publicada em 2020.

Além daquelas quatro colónias, que contam ao todo com cerca de 10 mil pares reprodutores, outras 15 colónias em toda a Antárctida também tiveram redução do gelo no seu habitat em 2022. “Cerca de 30% das colónias foram afectadas por perda de gelo no ano passado, por isso haverá muitos mais juvenis que não terão conseguido sobreviver”, diz Peter Fretwell. Mas ainda não há uma estimativa de mortalidade.

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Dois pinguins-imperadores a saltarem para o mar BRITISH ANTARCTIC SURVEY

Na natureza, os pinguins-imperadores começam a reproduzir-se a partir do quinto ano de vida e duram cerca de duas décadas. O colapso reprodutivo num ano não põe em risco uma colónia, que continuará a tentar reproduzir-se no mesmo lugar nos dois ou três anos seguintes. Se não resultar, a maioria das aves tentará ir para outra colónia.

“Se toda a região ficar sem gelo, não sabemos para onde irão”, diz o investigador. “Os adultos só forrageiam até ao máximo de 200 a 300 quilómetros”, acrescenta. A costa no mar de Bellingshausen tem 1500 quilómetros. “Vamos ter de esperar para ver.”

Mas Peter Fretwell receia pelo futuro daquela espécie se o fenómeno observado em 2022 continuar a suceder, ano após ano. “Todas as previsões do gelo marinho e das populações de pinguins-imperadores sugerem que isto se vai tornar bastante pior”, refere. “O quão mau vai depender de conseguirmos abrandar ou parar as nossas emissões de gases com efeito de estufa.”

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