O bacalhau não gosta de água a ferver

Em vésperas da noite em que o bacalhau estará na mesa de toda a gente (esqueçam o peru, por favor), duas ou três coisas sobre técnicas singelas e simples para respeitarmos tão nobre peixe.

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Como cozinhar um bacalhau perfeito? Daniel Rocha
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Não gostamos de impor tendências, mas, sempre que falamos de bacalhau, os dedos tremem no teclado. E isto porque não se diz do pé para a mão que esse velho hábito de cozer o bacalhau no tacho das couves e das batatas, com a água a ferver, é uma falta de respeito ao peixe que é um culto da nação. A afirmação é temerária, sim, pode chocar e levar alguém a arrancar pedras da calçada, mas estamos cá para isso. Para explicar e aguentar a pancada.

Ao ser curado durante meses em sal, o bacalhau sofre um primeiro processo de cozedura, pelo que, depois de reidratado, o calor que o vai cozer deve ser contido, com baixa temperatura e curta duração, caso contrário ficamos com um naco sem sabor, rijo e fibroso – que são algumas das razões pelas quais muita gente diz que não gosta de bacalhau (o bacalhau mete-se nos dentes e tal, pois).

Por outro lado, o bacalhau é muito rico em colagénio, uma proteína que se vende em comprimidos para, alegadamente, prevenir o envelhecimento humano. Se é ou não eficaz, não sabemos nada disso, mas de uma coisa temos a certeza: uma posta de bacalhau que mantenha os níveis de colagénio é muito mais saborosa do que aquela que o perdeu só porque andou aos saltos na panela com água a ferver. Em termos práticos, o colagénio é aquele brilho sedoso que observamos entre as lascas quando pressionamos levemente e desfazemos a posta. Se as lascas tiverem brilho, isso vai traduzir-se num peixe intenso de sabor, mas sempre sedoso e guloso (jamais fibroso). A água a ferver destrói a riqueza do bacalhau (do bacalhau e de qualquer peixe, já agora).

E a questão que nos interessa é como cozinhar o bacalhau de forma a que se chegue a este resultado perfeito. Não há uma única solução, e, nas últimas semanas, os chefs Vitor Sobral e Miguel Castro Silva foram à Escola do Gosto, do PÚBLICO, para apresentarem diferentes soluções de confecção. Em Lisboa e no Porto, cada um fez quatro preparações (clássicas e contemporâneas), mas, para o que nos interessa hoje, foquemo-nos naquela que, a nosso ver, é simples e eficaz: bacalhau confitado no forno.

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Cozido em caldo Daniel Rocha

Trata-se de, num recipiente de ir ao forno e tapado (se for uma assadeira grande pode cobrir-se com uma folha de alumínio), colocar postas de bacalhau num fundo de azeite (digamos que 1/6 da altura da posta, que o preço do azeite é o que se sabe). Neste mesmo tabuleiro podemos colocar os temperos de que gostamos. Quem quiser sentir o sabor primário do bacalhau nem precisa de meter nada, mas quem quiser algo mais complexo esteja à vontade: alho, tomilho, alecrim, louro, ervas e especiarias variadas. Como cá por casa se dá o caso de, no final da confecção do bacalhau, brincarmos às maioneses, gostamos sempre de meter uns gomos de limão ou de toranja (já lá vamos).

Ora, com o recipiente preparado, a ideia é metê-lo no forno a 150 graus, durante 18 a 20 minutos. Acabado o tempo, deixa-se descansar o peixe por uns cinco minutos porque isso faz-lhe bem. Como cada forno é um forno e cada posta tem a sua altura, agora pelo Natal há quem nos ligue, em pânico, antes da Missa do Galo, a dizer que o bacalhau parece estar cru. Aqui, as teses são as seguintes: a) o azeite nunca deve borbulhar; b) quando começarmos a ver a definição do ondulado das lascas do peixe é altura de se desligar o forno e dar-lhe o tal descanso. Acreditem, nunca falha. Tenham calma. Vão ter um bacalhau firme, mas cremoso, saboroso e sedoso. Um bacalhau íntegro, sem a perda do tal colagénio. E é aqui que bate o ponto. Se fervemos o bacalhau, libertamos toda a sua riqueza para a água; se o confitamos, preservamos tudo.

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Daniel Rocha

Mais, o azeite que resulta deste processo de confitar a baixa temperatura pode ser emulsionado com um batedor de varas ou com um batedor qualquer. Imaginemos que escaldamos umas ervas frescas (salsa, coentros ou salva) ou alho ou amêndoas e batemos tudo isso com o azeite cheio de sabor. O que sai daqui? Uma ‘maionese’ muito rica de azeite com os sucos do bacalhau e os temperos e só com produtos naturais. Os pais com crianças biqueiras agradecem.

Seco ou demolhado?

Posto isto, a outra grande questão é a escolha do bacalhau em si: salgado seco ou ultracongelado e demolhado? Aqui, como se sabe, a cada cabeça suas sentenças, algumas delas na categoria de lei universal. Para muitos consumidores, um bacalhau genuíno é aquele que é demolhado em casa e não se fala mais nisso. Bacalhau pronto a cozinhar, isso seria o diabo à mesa.

O melhor teste de algodão nesta matéria é provar às cegas bacalhau demolhado pelos dois processos: um salgado seco e demolhado em casa e outro proveniente de uma fábrica, no caso, por exemplo, da Riberalves, que foi pioneira neste processo do bacalhau pronto a cozinhar.

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Adriano Miranda

Aconteceu-nos, nalguns casos, que o bacalhau demolhado no frigorífico e com gelo, estava ao nível do bacalhau ultracongelado, mas, noutros casos, não. E porquê? Porque o bacalhau tratado em casa ora ficou com sal a mais, ora com sal a menos ou, ainda, por via das distracções da vida, com aromas desagradáveis pelo esquecimento clássico da mudança das águas. Já no caso do bacalhau ultracongelado não há surpresas. O ponto de sal é constante, a textura é constante e – muito importante – o facto de ter uma fina película de água congelada à volta impede que as postas queimem no congelador.

Já agora, e para esclarecer um assunto que volta e meia nos colocam, no caso do bacalhau demolhado e ultracongelado da Riberalves, os diferentes cortes (lombos, caras, línguas ou o que for) chegam-nos depois de terem passado tempos de cura de sal exactamente iguais aos do bacalhau salgado seco. Exactamente iguais. A única diferença é que, na fábrica da Moita —​ a maior do mundo para tratamento de bacalhau — são os responsáveis da Riberalves que demolham o bacalhau por nós. Com segurança e higiene controladas. Fazem-nos a papinha toda.

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Um bacalhau grelhado com migas Rui Gaudencio

Seja como for, e para regressarmos ao início da conversa, duas questões: uma, agora no Natal, se tiverem dúvidas sobre o bacalhau confitado, façam o bacalhau tradicional cozido com as couves, mas confitem duas postas pela receita acima exposta e que serão dadas a provar a quem estiver à mesa; duas, confeccionem da mesma maneira (de preferência confitado) umas postas demolhadas em casa e outras compradas numa marca de referência, que também serão dadas aos provar aos presentes. Não se aprende apenas a ler quem pensa que sabe do assunto, aprende-se com os próprios testes.

E tudo isto pode ser um pontapé na monotonia na ceia de Natal. Se correr mal, bom, mandem a conta aqui para a Fugas. Se correr bem, mandem-nos as fotos dos vossos bacalhaus. Façam é o favor de se divertir à mesa.

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