“Fiscalização inteligente” avança até final do ano para detectar falsos recibos verdes

Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho e Segurança Social, diz que não se pode esperar que 500 inspectores do Trabalho visitem todas as empresas do país e quer apostar na “fiscalização inteligente”.

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Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, quer apostar na “fiscalização inteligente” para detectar situações irregulares no mercado de trabalho de forma mais eficiente.

Uma primeira acção de cruzamento de dados entre a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e a Segurança Social permitiu identificar 80 mil empresas com 350 mil trabalhadores cujos contratos ultrapassaram os prazos legais. Destes, sublinhou, 70 mil ainda não foram regularizados.

Em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença, a ministra anunciou que, até ao final do ano, será feita uma acção semelhante para detectar falsos recibos verdes. Tudo faremos, com estas novas formas de detecção, para que se sinta que somos implacáveis no combate à precariedade, justificou.

Ana Mendes Godinho considera que o crescimento do emprego tem sido uma “âncora” do país e destaca o papel dos trabalhadores estrangeiros na resposta às necessidades do mercado de trabalho. Neste momento, há 650 mil estrangeiros a descontar para a Segurança Social, o que representa 10% do total de descontos.

Num eventual cenário de recessão, com o qual já se confrontam vários parceiros comerciais de Portugal, admite que seja preciso fazer aumentos intercalares no próximo ano?
O que temos feito ao longo dos últimos anos é responder, em cada momento, em função das circunstâncias que temos vivido, criando mecanismos extraordinários de apoio ao emprego ou às famílias.

A opção que fizemos este ano foi internalizar estruturalmente estes apoios extraordinários nos grupos específicos que consideramos que têm de ter, até para preparar o próximo ano com uma almofada especial, apoios excepcionais. Mas como sempre assumimos, vamos acompanhando a situação à medida que evolui.

Pode haver necessidade de aumentos intercalares de salários e pensões?
Em 2024, assumimos o aumento das pensões de acordo com a fórmula de actualização [prevista na lei] e que varia entre 5,2% e 6,2%. É um valor acima da inflação que, no acumulado, permite que a pensão média aumente cerca de 29% desde 2015.

Em relação aos salários, com a assinatura do reforço do Acordo [de Médio Prazo de Melhoria dos Rendimentos, dos Salários e da Competitividade], aumentámos o valor do salário mínimo. Tínhamos programado que subisse [de 760 euros] para 810 euros, em 2024, mas decidimos ir mais longe e chegar aos 820 euros. Também decidimos ir mais longe no referencial para o aumento dos salários, que passa de 4,8% para 5%.

É um esforço colectivo de mobilização de instrumentos que, por um lado, permitem às empresas ter mais capacidade para aumentar os salários e, por outro, garantem rendimentos não salariais, de que são exemplos o reforço do abono de família, da garantia para infância ou da gratuitidade das creches. Há também novos mecanismos ao nível fiscal, como a isenção fiscal e contributiva sobre instrumentos dedicados à habitação dos trabalhadores.

O governador do Banco de Portugal pediu temperança” nos salários para manter o emprego e evitar uma aterragem brusca da economia. Como é que interpreta este alerta de Mário Centeno?
É um retrato do que tem acontecido. O salário médio declarado à Segurança Social em 2023 está a aumentar cerca de 8% e estamos com mais 190 mil pessoas a descontar do que no ano passado, o que é um número impressionante. Se compararmos o número de trabalhadores activamente a participar na Segurança Social neste momento com o mesmo período de 2015, temos mais um milhão e 200 mil pessoas a trabalhar e a descontar.

A leitura que faço do sinal dado pelo governador do Banco de Portugal é no sentido do reconhecimento de que manter o emprego é a âncora que nos liga a todos.

Até quando se manterá esta situação de pleno emprego”?
Estamos com uma taxa de desemprego historicamente baixa, de cerca de 6,7%, e também estamos com um número recorde de pessoas a descontar para a Segurança Social que, neste momento, são quase cinco milhões de pessoas.

A previsão que fazemos para o próximo ano é uma estabilização da taxa de desemprego e um crescimento de cerca de 0,4% do emprego. É uma previsão conservadora da evolução do mercado de trabalho, mas também consciente do que pode ser o ano de 2024.

Independentemente das circunstâncias e de como evoluir a situação económica, cá estaremos para mobilizar os instrumentos necessários para manter o emprego.

Qual tem sido o contributo dos trabalhadores estrangeiros para este aumento do emprego e quantos descontam para a Segurança Social?
Neste momento temos cerca de 650 mil trabalhadores estrangeiros a descontar activamente para a Segurança Social. É um número muito impressionante e que mostra o nosso dinamismo enquanto país que atrai talento nos vários segmentos e níveis de qualificações. Temos muitos estrangeiros a trabalhar na área das tecnologias, nas áreas científicas, nas áreas técnicas.

Em 2020, criámos uma medida à qual chamámos “Número de Segurança Social na Hora” para tentar cortar ciclos quase impossíveis de as pessoas entrarem na economia formal e é impressionante ver o número de estrangeiros que entraram no sistema. Foram mais de 350 mil pessoas que obtiveram, até ao momento, o número de Segurança Social na hora. Isto mostra que a simplificação é um factor de inclusão.

Qual o peso do desconto destes trabalhadores no total?
Representam cerca de 10% dos trabalhadores e dos descontos feitos à Segurança Social.

Quanto ao futuro, de quantos trabalhadores estrangeiros precisaríamos e em que áreas?
São sinalizadas pelas empresas necessidades nas áreas tecnológicas, da construção civil, do turismo e da economia do cuidado. Estamos a procurar identificar as áreas concretas para fazer uma ligação entre as necessidades e a promoção e divulgação no estrangeiro destas oportunidades de emprego em Portugal.

Colocámos adidos dedicados ao trabalho em Cabo Verde, Marrocos, Timor e Índia. O objectivo é colocar estes adidos nos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), mas estamos a fazer mais do que isso e optámos por, em Cabo Verde, Moçambique e Timor, fazer directamente a formação nestes países.

Em Julho, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) identificou 350 mil trabalhadores cujos contratos ultrapassaram os limites legais. Quantos destes trabalhadores estavam, de facto, em situação irregular e que medidas foram tomadas?
Não podemos estar à espera que 500 inspectores vão verificar todos os locais de trabalho do país e, hoje em dia, com a inteligência artificial e com o cruzamento de dados, conseguimos detectar situações de forma mais eficiente.

Pela primeira vez, fizemos uma acção de cruzamento de dados entre a Segurança Social e a ACT. Num primeiro momento, foram detectados cerca de 350 mil trabalhadores, em 80 mil empresas, cujo prazo identificado nas bases de dados da Segurança Social ultrapassava o limite legal e as empresas foram notificadas para corrigir as situações.

Num segundo momento, subsistiram cerca de 70 mil trabalhadores relativamente aos quais as situações ainda não tinham sido alteradas ou corrigidas. Neste momento, a ACT e o Instituto Informática estão a verificar estas 70 mil situações para agir relativamente às [empresas].

O nosso objectivo é continuar com este tipo de intervenção de fiscalização inteligente. Até ao final do ano contamos fazer uma acção semelhante de cruzamento de dados para detecção de falsos recibos verdes.

Gosto de citar o Papa Francisco quando diz que a precariedade mata vidas e mata a sociedade – porque um jovem que tem um contrato precário ou um falso recibo verde dificilmente terá capacidade de se autonomizar e de decidir ter crianças. Tudo faremos, com estas novas formas de detecção, para que se sinta que somos implacáveis no combate à precariedade que não tem qualquer justificação.

O Governo quer aproximar a tributação dos recibos verdes da tributação do trabalho dependente, mas a medida não está prevista no OE. É para avançar?
Essa é uma medida que incluímos no reforço do Acordo de Valorização dos Rendimentos, dos Salários e da Competitividade. No caso da Segurança Social já existe um mecanismo de correcção das contribuições das empresas, quando é detectado que um trabalhador é economicamente dependente. O objectivo é também criar mecanismos para que as opções fiscais não determinem a perversão do sistema ou a opção por falsos recibos verdes. É uma medida para regulamentar e trabalhar em sede de Concertação Social com os parceiros.

O IVA zero vai ser substituído por apoios directos aos mais necessitados. Há um valor fixo a atribuir a cada pessoa ou é um valor que vai ser incorporado nas próprias prestações sociais?
A opção para 2024 foi reforçar estruturalmente as prestações sociais. Nos apoios às famílias com filhos temos um aumento de 22 euros no abono de família e, no caso das famílias monoparentais, de, no mínimo, 33 euros. Mas também antecipámos para 2024 a convergência complemento solidário para idosos com o limiar de pobreza, o que significa um aumento no valor de referência de 62 euros por mês, e aumentámos o valor-base do rendimento social de inserção em 28 euros por mês. Modelámos as prestações para garantir que incorporamos os apoios extraordinários.

Estes aumentos das prestações decorrem da medida IVA Zero que foi eliminada?
Estes aumentos decorrem de dois factores: da incorporação dos apoios extraordinários e da incorporação do impacto que a medida IVA Zero tinha nestes agregados e nos seus custos com a alimentação.

A preocupação que tivemos foi focalizar nas famílias mais vulneráveis, sobre as quais o aumento dos bens alimentares tem mais efeito, dando-lhes um adicional que passa a ser estrutural e incorporado na prestação.

Ao nível fiscal, o Orçamento do Estado (OE) para 2024 está muito virado para a classe média, segundo o ministro das Finanças. O que é neste momento a classe média?
A grande prioridade que este Orçamento assume é a valorização dos rendimentos das famílias e dos trabalhadores nas suas várias dimensões, seja na valorização dos rendimentos não salariais, através dos apoios sociais, seja na valorização dos salários e na diminuição dos impostos sobre o trabalho.

A redução de impostos é uma pedra-de-toque do OE para 2024. Foi isso que nos mobilizou a todos: seja na redução do IRS; seja no salário mínimo isento de IRS; seja através também de uma nova medida prevê um incentivo fiscal quando haja partilha na distribuição de lucros aos trabalhadores.

A saída da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) deixou o acordo de rendimentos fragilizado? Prevê que as empresas associadas da CIP não apliquem o aumento de 5% previsto?
O acordo inicial e o reforço do acordo vivem pela força das suas medidas e dos seus objectivos. Um exemplo concreto, o incentivo fiscal de valorização do salário dos trabalhadores, que é a majoração em IRC, aplica-se às empresas que pagarem este aumento.

Que leitura faz do facto de a CIP ter ficado fora do acordo e de ter colocado o foco no 15.º mês?
Foram semanas intensíssimas de diálogo e negociação com todos os parceiros sociais.

Não houve um tratamento privilegiado da CIP?
Reuni-me com todos os parceiros sociais de uma forma muito intensa, muito participada. Tínhamos, por um lado, um documento comum entregue por todas as confederações patronais e, depois, tínhamos documentos entregues individualmente por cada uma das confederações patronais e sindicais.

As 54 medidas do reforço do acordo resultam de um equilíbrio e, naturalmente, não podem satisfazer todas as partes. Temos medidas importantes e de transformação do mercado de trabalho, como a criação de um mecanismo de reforma a tempo parcial.

É para avançar quando?
O objectivo que assumimos foi ser implementada em 2024.

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