Contas do Chega clonam jornais para partilhar informação falsa nas redes sociais

Grafismos do PÚBLICO e da Rádio Renascença usados para partilhar notícias inexistentes em contas do partido de André Ventura. Táctica foi usada pelos russos após invasão da Ucrânia.

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Publicações feitas por contas do Chega com grafismos de PÚBLICO e Rádio Renascença Infografia/PUBLICO
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Um título, um parágrafo e a identidade gráfica de órgãos de comunicação social credíveis. Esta tem sido a técnica usada por contas ligadas ao Chega, incluindo a do líder André Ventura, para partilhar informações com origem no site ​da Folha Nacional. As publicações em várias redes sociais, como o X (antigo Twitter), o Facebook e o LinkedIn, imitam a imagem de sites informativos, mas são falsas. Trata-se de uma técnica identificada por especialistas e que também tem sido usada pela Rússia para propaganda ou em burlas na Internet.

Pelo menos desde Julho, dezenas de contas associadas ao partido Chega têm partilhado imagens nas redes sociais com informação falsa. Utilizam o layout de órgãos de comunicação social, como o PÚBLICO e a Rádio Renascença, com conteúdos que são originalmente publicados no Folha Nacional, o órgão de comunicação oficial do partido. Uma das últimas tinha como título: Ventura diz que fogos vão parar quando não houver um incendiário em liberdade.

A imagem, que foi partilhada no Twitter de André Ventura, é em tudo semelhante ao estilo usado no jornal PÚBLICO, mas refere-se a um conteúdo que não existe no site do jornal. Por outro lado, no órgão daquele partido conseguimos encontrar uma publicação com este título e com a mesma data e hora que aparece no post falso.

Notícia publicada pela Folha Nacional, publicação oficial do Chega Folha Nacional
Utilização do grafismo do PÚBLICO em publicação da mesma notícia nas redes sociais DR
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Notícia publicada pela Folha Nacional, publicação oficial do Chega Folha Nacional

“Estas emulações de formatos de jornais já existentes nascem com o intuito de induzir um maior envolvimento/engajamento nos seus seguidores online. Deste modo, recorrem a formatos visuais que de algum modo possuem a sua identidade visual já consolidada no imaginário colectivo e procuram com isto emprestar ao seu discurso algum grau de autenticidade que lhes falta”, explica ao PÚBLICO Francisco Conrado, investigador e professor no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho.

Em resposta ao pedido de esclarecimento do PÚBLICO, o Chega diz que “não copia grafismos nem os quer copiar, dado ser o partido com mais engajamento nas redes sociais”. O partido liderado por André Ventura diz ainda que o Folha Nacional “tem o seu próprio grafismo e está a testar várias secções com modelos diferentes”, algo que o partido defende como “absolutamente legítimo face à legislação em vigor”. Por último, o Chega aborda o tema de desinformação: “Nesse caso, o próprio partido lança uma investigação para saber se as notícias são falsas ou não, nomeadamente as que correm em grupos de Whatsapp, Messenger ou Telegram. Esse processo continua em curso.”

Táctica usada em fraudes e desinformação russa

A usurpação do grafismo pode ir de uma “mera” publicação nas redes sociais até à construção de uma página web funcional que tem como objectivo copiar todo o jornal. Com domínio semelhante ao original e, por vezes, hiperligações que remetem para o órgão de comunicação verdadeiro, tudo é criado com o objectivo de ludibriar os leitores.

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Segunda utilização do grafismo do PÚBLICO na adaptação de notícia publicada pelo Chega DR

Em Junho, o PÚBLICO já tinha alertado para uma campanha fraudulenta a envolver a venda de produtos para perder peso. E é exactamente esta a táctica que a Rússia usou após a invasão na Ucrânia, numa operação baptizada com o nome de Doppelganger — sósia, em português.

A estratégia de manipulação internacional foi descoberta pela organização europeia DisinfoLab, dedicada ao estudo dos fenómenos de desinformação. Nesta acção de larga escala, foram copiados sites de órgãos como os jornais The Guardian, Bild e a revista germânica Der Spiegel, entre outras publicações espalhadas pela Europa. A ideia era simples: difundir informações falsas sobre os parceiros ucranianos e enaltecer as acções do Kremlin. Massacres como os que aconteceram em Bucha eram negados, com milhares de contas falsas a partilharem desinformação nas redes sociais nos meses que se seguiram à invasão.

Conteúdos chegam a milhares de pessoas

“Chega é o partido com mais notícias negativas. PS tem a melhor cobertura”, pode ler-se no Folha Nacional num artigo publicado a 31 de Julho. O mesmo título e texto podem ser, depois, encontrados em publicações nas redes sociais usando um estilo gráfico semelhante àquele que é usado pela Rádio Renascença.

Através de uma análise com apoio das ferramentas da Google, é possível ver que esta imagem se encontra replicada em várias páginas relacionadas com o partido de Ventura, como é o caso da distrital de Coimbra no Facebook ou de Maria Vieira, ex-actriz e deputada municipal do Chega em Cascais, no Twitter. Mas conseguimos encontrar esta mesma imagem em plataformas como o LinkedIn. Amplificadas em várias plataformas, conseguem, deste modo, ser visualizadas por milhares de utilizadores das diversas redes sociais.

As publicações são partilhadas, inclusive, por outros partidos de extrema-direita. A suposta notícia de milhares de inscritos da Jornada Mundial da Juventude desaparecidos ligada a suspeitas de imigração ilegal – que se veio a revelar falsa – foi partilhada pelo Ergue-te, partido ultranacionalista e ex-Partido Nacional Renovador (PNR). Tal como no caso do Chega, a imagem foi partilhada com o grafismo idêntico ao da Rádio Renascença.

“Esta reminiscência na maior parte das vezes associa o conteúdo à imagem, podendo gerar confusões e, como pretendido, que algum leitor mais desavisado associe o template a que já tem memória consolidada com a informação que lhe foi servida”, contextualiza Francisco Conrado, explicando que não é um fenómeno inteiramente novo. “Esta prática já vigora nos EUA há alguns anos. Muitas publicações tentam mimetizar os templates de jornais como The New York Times, The Washington Post ou mesmo CNN para a partilha de notícias falsas. No curto prazo, esta tipologia de acção serve para facilitar a leitura e assimilação da notícia partilhada, já que lhes empresta autenticidade, e, paradoxalmente, no longo prazo, serve para minar a credibilidade destes mesmos veículos que procuram imitar.”

“Abuso, intencional e propositado, para enganar os cidadãos”

Que impactos podem ter estas publicações na vida democrática? O que pode ser feito para alertar o público em caso de manipulação? No X (antigo Twitter), as publicações são assinaladas com um aviso: no caso da notícia com o grafismo da Rádio Renascença, os utilizadores têm um alerta que deixa claro que a matéria não foi tratada por este órgão de comunicação.

Para Miguel Crespo, investigador no Iberifier (Observatório Ibérico dos Media Digitais e da Desinformação), o primeiro passo passa pela apresentação de uma participação à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).

“Se o Folha Nacional é um meio de informação registado na ERC, uma queixa deveria ser feita de imediato por abuso e tentativa de manipulação quando este meio publica conteúdo enganoso. E, mesmo sem queixa, a ERC deveria tomar a iniciativa de agir, pois é esse o papel de um regulador — garantir que no sector que regula se cumprem as leis. Além disso, os meios atingidos deveriam agir judicialmente e, a meu ver, até rever a sua política editorial quanto ao partido político em causa. Ninguém pode publicar conteúdos enganadores sem sanção, e a desculpa de amnésia temporária não pode ser aplicável. Quem não respeita as regras da democracia não merece ser enquadrado na cobertura jornalística democrática”, reitera o investigador.

Notícia com grafismo idêntico ao da Rádio Renascença DR
Notícia do Folha Nacional antes da adaptação para as redes sociais Folha Nacional
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Notícia com grafismo idêntico ao da Rádio Renascença DR

A ERC não respondeu ao pedido de esclarecimento enviado pelo PÚBLICO. De acordo com as informações veiculadas por fonte oficial à Agência Lusa esta quarta-feira, ainda não tinham existido participações contra estas publicações.

Para Miguel Crespo, estas acções podem ser consideradas uma ameaça à democracia, com o investigador a relembrar que este não é o primeiro caso do género a envolver o Chega. Se é ou não crime, o especialista deixa essa avaliação para a Justiça, mas considera o caso “obviamente abuso, intencional e propositado, para enganar os cidadãos”.

“Há poucos meses, um artigo de opinião, com acusações gravíssimas e não-fundamentadas, cheios de mentiras e manipulações, foi publicado pelo Folha Nacional com a assinatura e o logo da Agência Lusa. Mas muitas vezes no passado André Ventura publicou informação manipulada ou falsa, e sempre se recusou a apagá-la, insistindo na mentira com o desdém de quem se acha acima de todos os outros. Por exemplo, na campanha para as Presidenciais de 2021, publicou sistematicamente visualizações de sondagens com a dimensão das barras manipulada para parecer que tinha muito mais intenções de voto do que tinha na verdade, e nas eleições regionais dos Açores chegou a publicar os resultados de uma sondagem que nunca existiu, supostamente realizada por uma empresa inexistente”, detalha.

À hora da publicação deste artigo, e apesar dos alertas deixados pelas próprias plataformas mas também por utilizadores, os exemplos apresentados neste texto continuam acessíveis na Internet. Na resposta enviada pelo Chega ao PÚBLICO, não é explicada a razão para as publicações ainda estarem acessíveis nas respectivas páginas ligadas ao partido.

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