Lideranças em ciência

Quais são as grandes novidades/interrogações para os próximos tempos? Essencialmente duas: uma pessoal, uma situacional.

Não sendo historiador de ciência, ignoro o que se escreverá sobre Manuel Frederico Tojal de Valsassina Heitor, o nosso ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; até porque essa história, felizmente, não terminou.

Baseando-me apenas no que dele conheço, diria que é um trabalhador incansável e uma pessoa genuína nas suas convicções. Pode não ter sido um ministro bem-sucedido, ter feito opções erradas ou muito discutíveis e promovido políticas nebulosas (estou a ser simpático, porque o cargo não é nada fácil), mas era impossível encontrar alguém mais óbvio para assumir a pasta; sobretudo porque conhecia em profundidade todos os meandros. Podia ser (como mais tarde se insinuou) uma “pomba” entre “falcões” em termos de peso político, mas ao menos era reconhecido por colegas ministros como uma ave, alguém com acesso a um poleiro (é uma metáfora pesada, mas não imerecida, em política).

Para além de ter sido um muito elogiado número dois de José Mariano Gago (um crédito que serviu também para mitigar críticas ao longo dos seus mandatos), Manuel Heitor preparou-se a sério, para além do famoso Livro Negro da Avaliação Científica em Portugal (2015), que infelizmente se mantém atual, com outros cambiantes.

Escolheu alguém com aparente vontade de fazer (Paulo Ferrão) para presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT); embora tenha acabado, e isto resume o esvaziar do seu mandato, com o exato oposto em termos de perfil nesse mesmo cargo (Helena Pereira).

O que vou dizer a seguir pode não ser muito público, mas, ainda se negociava a “Geringonça”, e o nosso quase-ministro estudava a fundo dossiês fazendo um périplo pelo país, encontrando-se com dezenas de responsáveis das mais variadas entidades relevantes, aconselhando-se, mapeando problemas, ouvindo. Fê-lo já na perspetiva com que iria assumir o cargo, procurando ligações entre ciência e economia, e reunindo simultaneamente com investigadores e empreendedores científicos (não é a mesma coisa), e empresas, por exemplo no Biocant Park em Cantanhede, muitas vezes olvidado por não ser central.

Manuel Heitor nunca escondeu que uma ligação direta entre ciência e economia era um dos fulcros da sua visão, talvez menos porque fosse genuinamente sua, mais porque era (e é) a da Comissão Europeia e quiçá do mundo em geral (infelizmente), já que é duvidoso que vários responsáveis de países em continentes distintos tenham sido visitados em simultâneo por um mesmo Arcanjo, anunciando políticas científicas idênticas.

O errado nesse pressuposto é, não só a questão de escala e adaptação na cópia de modelos estrangeiros onde, por isso mesmo, ficaremos sempre em posição subalterna (a “estratégia Fraunhofer”, se quiserem, como antes a “estratégia MIT”), mas presumir uma ligação umbilical, já que muitos dos impulsos científicos à economia não surgiram de modo tão planeado, na verdade por isso mesmo é que foram impulsos (e não é preciso ler Thomas Kuhn para o perceber).

Mas, como noutras áreas (da saúde ao ensino), a esmagadora maioria dos profissionais de ciência não é informada das prioridades e opções de modo aberto e leal, têm de ir adivinhando. Hoje creio saber (mais do que adivinhar) que tal acontece porque os próprios responsáveis não sabem com o que contar, ou não têm (ao contrário de Mariano Gago) uma visão empenhada (certa ou errada) que não muda a cada contratempo ou oportunidade. Ou ambas as coisas.

Quais são as grandes novidades/interrogações para os próximos tempos? Essencialmente duas: uma pessoal, uma situacional.

A ministra Elvira Fortunato tem, em termos de prestígio, uma imagem tão forte e empreendedora (e contestatária, no bom sentido) como a que pode ter uma cientista, algo que Manuel Heitor nunca teve. O que explica o silêncio que tem rodeado a sua atividade inicial, é uma questão de benefício da dúvida. Mas será capaz de ouvir e sair fora da sua área de conforto, na qual se faz a maior parte da ciência em Portugal? E, sobretudo, terá peso político relevante?

Por outro lado, temos a situação, uma maioria absoluta. Manuel Heitor defendia-se muito com os equilíbrios da “Geringonça”, citando-a, por exemplo, na trapalhada que foi a norma transitória do Decreto-Lei 57, ou nas iterações confusas das avaliações (lá está...) para Laboratórios Associados e centros de investigação.

Refira-se o óbvio: essas desculpas tendem a esconder uma falta de estratégia global, que se culpa externamente (comunidade europeia, crise, Guerra; o horóscopo, se nada mais houver), para se navegar à vista, adiar, e resolver problemas avulsos.

Com uma maioria absoluta seria de esperar, na ciência como em tudo o resto, uma afirmação clara e forte daquilo que se pretende, uma visão, uma política, uma estratégia. Podia ser dura e difícil, podia não agradar a todos (se agradasse era mau sinal), mas teria de ser ambiciosa, sem medo de errar. Porque ciência (e vida) é sobretudo erro e reação ao erro, embora ninguém o queira admitir, já é algo que se “comunica mal”. Podia ter de ser mudada e ajustada, mas tentava-se. E mobilizava-se uma comunidade que só quer, genuinamente, fazer parte da solução. Uma comunidade que continua positiva, apesar de tudo. E que está à espera, de qualquer coisa. Desejando que seja um renascer da capacidade de assombro, de que falava Lawrence Ferlinghetti no magnífico poema “I Am Waiting”, em vez do Godot de Samuel Beckett, famoso por nunca chegar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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